Despojos de dignidade. Talvez seja esta uma forma arriscadamente simplista para apresentar o mais recente romance de João Pinto Coelho, que retrata a vida de uma pequena comunidade situada na Polónia antes, durante e depois da guerra e o contexto de um massacre perpetrado por cristãos relativamente a judeus, gente que antes convivia e se relacionava em contextos intimistas e pacíficos.
Muito se tem escrito e romanceado sobre a II Guerra Mundial, quase sempre a partir do comportamento invasor alemão, quase sempre com papeis consensualmente atribuídos a vítimas e a agressores. “Os Loucos da Rua Mazur” (Leya, 2017), de João Pinto Coelho (Prémio Leya 2017), apresenta uma abordagem diferente deste momento da história.
No nordeste da Polónia, entre 1935 e 1941, acompanhamos a vida de três amigos, jovens adolescentes, que vêm as suas vidas clivadas pelos acontecimentos geopolíticos de então e pela herança religiosa e cultural que transportavam consigo. Yankel, judeu, cego, torna-se décadas mais tarde livreiro em Paris, capaz de encontrar imagens para retratar a realidade.
Eryk, católico, maquiavélico, revela-se um improvável escritor que se disfarça nas personagens que cria, ensaiando a própria vida nos romances. Shionka, uma muda funcional que se torna relatora e editora, voz de memórias que agridem quem as recupera. O foco é surpreendente, indo com detalhe a parcelas da vida de um povo que se viu duplamente invadido e dividido pelos dois invasores, alemães e russos, como pela fragmentação social e religiosa surgida na própria sociedade polaca.
Entre Setembro de 1939 e o fim do conflito mundial, a Polónia viu-se multiplamente dividida entre o ressentimento dirigido às forças alemãs e soviéticas, o registo de alianças e a sobrevivência relativamente aos invasores, vítima de um terror em massa e de um esquema de dilação e denúncia.
Durante anos, os polacos viram-se privados de dignidade e de confiança a determinada altura em si próprios, tal o efeito pernicioso da dilação, perseguição e aniquilação promovida pelos ocupantes e efectivada, em certos momentos, por eles próprios, sabendo que a qualquer momento qualquer pessoa poderia ser alvo do extermínio, fosse qual fosse o pretexto, religioso, genético, étnico ou tão só estético, qual busca da perfeição. Apontam-se para cerca de seis milhões de pessoas as vítimas polacas mortas durante a invasão do país no período de 1939 a 1945. Muitos sobreviveram tornando-se refugiados no seu próprio país.
“Os Loucos da Rua Mazur” dá voz e visibilidade a uma forma especialmente perversa do domínio ocupante, nazi e soviético, aquela que conseguiu corromper as bases da convivência e confiança comunitária, substituindo-a por dilação, denúncia e anti-semitismo levado ao extremo, entre os próprios polacos, retratando a forma como muitos foram exterminados fora dos campos e dos guetos. Já em 2001, em Paris, cada um dos três protagonistas, fisicamente sobreviventes, mas emocionalmente esfarrapados, dão corpo à resiliência, reserva e dignidade do povo polaco. Ao recuperarem as memórias da inverosimilhança de episódios passados, vividos pelos próprios constatam que “quem viu de frente o inferno, não pode querer lá voltar nem contar o que encontrou”.
Longe de ser consensual, especialmente pela visão que o autor apresenta da fragmentação da sociedade polaca, trata-se de um livro que rompe com a unilateralidade dominante de apresentação destes acontecimentos históricos. Fá-lo depois de, entre outros projectos na área, ter integrado acções do Conselho da Europa em Auschwitz e trabalhado de perto com vários investigadores do Holocausto. Como relato com fundamento histórico, a narrativa de João Pinto Coelho serve-se da magia das palavras e da escrita, das letras e dos sons, independentemente da sua forma, como forma de sobrevivência e renovação de uma memória que se deseja imparcial e profundamente subjectiva. Contraditório? Talvez. Impossível? Não necessariamente. Leiamos “Os Loucos da Rua Mazur” e constatemos a forma como as cinzas desta memória assentaram.
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