“Era uma manhã de domingo da mais bonita Primavera. Georg Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado no seu quarto privativo, no primeiro andar de uma das casas baixas, de construção frágil, que se estendiam num longo renque pela margem do rio, diferentes só na altura e na cor.”
O parágrafo acima transcrito pertence a “A sentença” mas, se o olharmos à lupa, encontraremos algumas semelhanças com “A metamorfose”, um texto enorme do checo Franz Kafka. O próprio, numa carta de 1916 dirigida ao seu editor Kurt Wolff – não aquela em que pedia para deitar fogo aos seus escritos escrita ao testamentário Max Brod -, expressou a vontade de publicar em conjunto três textos seus, coligidos sob o título “Os filhos” (Ítaca, 2016): A sentença, O fogueiro e A metamorfose. Um tríptico em crescendo que, tendo em A metamorfose o seu apogeu, descreve a forma singular de violência familiar.
“A sentença” centra-se na relação minada entre um pai e um filho, ilustrada através de um amigo com contornos imaginários que, em pouco tempo, se tornará um dúplice, um cúmplice na ideia de fuga sem retorno. É um texto curto, sem adornos, o laboratório do que Kafka escreveu mais tarde em “A metamorfose”, a novela-prima sobre a família enquanto prisão.
“O fogueiro” conta a história de Karl Ro£mann, um “rapaz de dezasseis anos que os pais, pessoas pobres, haviam enviado para a América porque uma criada o seduzira e tivera um filho dele…” Uma história sobre o amor parental e sobretudo a falta dele, que tanto poderá ser (re)descoberto com um fogueiro amargurado como junto de um tio desconhecido.
“A metamorfose” é um dos picos criativos de Kafka, um texto que toca o fantástico para descrever a ascensão e queda de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante e sustento de uma família que, numa certa manhã, acorda transformado num monstruoso insecto. Da preocupação inicial familiar depressa se passa à indiferença e, mais tarde, ao ódio. Ao contrário de “A sentença”, onde o suicídio é quase gritado aos sete ventos, aqui a tragédia individual é vivida de forma amarga mas tranquila, numa violência que é sobretudo psicológica e moral.
Tríptico sobre a violência familiar, “Os filhos” mostra-nos uma das grandes obsessões de Kafka, a violência familiar, que correu em paralelo com a ideia de justiça. Kafka que, acrescente-se, teve uma relação desastrosa com o pai, chegando a escrever-lhe uma carta de várias páginas que nunca chegou a enviar. Uma carta onde, a certa altura, se lê isto:
“Também é verdade que, de facto, mal me bateste. Mas os gritos, o rubor da tua face, os suspensórios tirados à pressa e colocados à mão nas costas da cadeira quase me eram mais terríveis. É como se estivesse para ser enforcado. Se fosse realmente enforcado, então morreria e tudo estaria acabado. Mas quando se tem de assistir a todos os preparativos para o enforcamento e só se sabe do perdão depois de se ter o nó diante dos olhos, bem se pode sofrer pela vida fora.”
(In “Carta ao pai”, Relógio d’ Água – 2004)
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