No lançamento de “Os Filhos de El Topo 1: Caim” (Arte de Autor, 2019), Alejandro Jodorowsky recua até ao ano de 1970, recordando o facto de El Topo não ter tido estreia em nenhuma sala de cinema considerada “normal” na cidade de Nova Iorque. O filme acabaria por estrear em Elgin, “um cinema de bairro de tendência pornográfica”, alcançando o estatuto de filme de culto, com as sessões da meia-noite a encherem-se durante noites sucessivas – há quem diga que foi assim que nasceu o conceito de “cinema da meia-noite”.
Porém, nem mesmo este sucesso comercial foi capaz de convencer os produtores a continuar a empreitada, tendo o argumento de “Os Filhos de El Topo”, a sequela pensada por Jodorowsky, permanecido durante umas boas décadas na gaveta. O sonho acabou por concretizar-se através da banda desenhada, em 2016, numa parceria com José Ladronn, para Jodorowsky “o desenhador ideal”. Segundo ele, o resultado final foi um “filme gráfico (…), no qual cada página está dividida em três bandas para que, como diante de um ecrã, o leitor-espectador tenha a sensação de estar numa sala de cinema”.
Como em qualquer obra do universo de Jodorowski, o cenário é de alguma bizarria e perversidade, num western bíblico que destila acidez e um misticismo carregado de sombras. Segundo reza a lenda, “El Topo foi um bandido que, ao abrir as portas do seu coração, se tornou um santo, ao ponto de realizar grandes milagres”. Na sua época mais obscura teve um filho, de nome Caim, que abandonou enquanto este era ainda uma criança. Caim tornou-se um homem funesto, pérfido, incapaz de perdoar o pai pelo abandono, decidido a ter a sua vingança virando-se para Abel, o seu meio-irmão.
A sepultura do Santo, feita de colmeias, menires de ouro e um fosso onde corre ácido, é um local de peregrinação para milhares, que chegam em busca de um milagre – ou, o mais certo, para tentar deitar as mãos ao ouro, o que não é tarefa fácil: “Ninguém engana o santo” é dito de boca em boca como um mantra. Um santo que, para lá da adoração, recebe o desprezo de Caim – “Morreste pela paz mas semeaste a hipocrisia e a violência!” -, condenado a vaguear pelo mundo vestindo o manto da invisibilidade, apenas reconhecido pelos ladrões e por uma mulher com espírito beatífico que lhe parece abrir as portas da redenção. A série ficará completa com os volumes “Abel” – já publicado pela Arte de Autor – e “AbelCaim”.
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