“O som das vozes enche o mundo – quero dizer, enche as diferentes dimensões em que o mundo se transformou – e é nesse tumulto que me amparo, que vivo por fim. O meu nome incessantemente gritado a propósito de qualquer coisa, disparado de múltiplas coordenadas, suspenso no horizonte cada vez mais nebuloso que separa a realidade do universo virtual.”
Laura, fotógrafa de guerra, vive há dois anos na ribalta de um circo mediático, desde que matou um terrorista islâmico em pleno ataque a um café parisiense. Um vídeo, filmado pelo telemóvel de uma transeunte, transformou-a numa bandeira de múltiplas causas – “das mulheres, da luta antiterrorismo, da liberdade, da civilização ocidental, da vida, dos ideais da Revolução Francesa, dos cristãos, dos muçulmanos não radicais, da democracia, dos oprimidos, da igualdade, do capitalismo, da paz, da humanidade” –, mas também lhe granjeou ódios de morte. À medida que as entrevistas repetitivas e as sessões de autógrafos do livro que escreveu a partir daquele acto decisivo se sucedem, levando-a a saltar de um país para outro, a fadiga instala-se, mas ela é incapaz de parar. Afinal, tem a própria “vaidade para nutrir”.
A partir desta situação, David Machado – vencedor do Prémio União Europeia para a Literatura e do Prémio Salerno Libro d’Europa, com “Índice Médio de Felicidade” – constrói, em “Os Dias do Ruído” (Dom Quixote, 2024), uma narrativa fortíssima em duas frentes principais: a descrição da dinâmica vertiginosa do mundo virtual de hoje, dominado pelo ruído das redes sociais, pleno de rótulos e de indignações; e a representação da mente complexa de alguém cuja insegurança gera dependência da atenção alheia.
Entre a família disfuncional que abandonou, o ex-marido britânico que se preocupa com ela, a enteada à beira da idade adulta, e a melhor amiga que usa para se sentir melhor com a vida que leva, Laura sabe que transporta em si vazios à espera de serem preenchidos, e sofre com o pânico de que o público lhe note a falta de conhecimentos e de ideias originais, mas não consegue parar de viver na “euforia provocada pelo imenso clamor das vozes” dos seus seguidores e detractores, servindo de tema de memes, apostas e polémicas. Porém, tudo muda quando a gravidade das ameaças de morte conduz a um regresso às origens.
É assim que, após uma primeira parte centrada no ritmo frenético da vida da protagonista, assistimos ao seu regresso a uma casita decrépita, num bairro velho e pobre de Peniche, onde “a vida acontece numa linha temporal paralela e independente daquela na qual o resto do mundo se encontra”. Aí, a submissão a um pai manipulador é o preço a pagar pela eliminação da ansiedade e da necessidade de exibir uma personalidade postiça. A presença digital de Laura reduz-se ao mínimo, mas é o recurso às redes sociais num momento decisivo – associado ao estilhaçar da antiga imagem do pai – que lhe permitir recalibrar “o sistema de pesos e contrapesos que sustenta o mundo”, encontrando nele o seu lugar.
A terceira e última parte do livro é muito mais curta do que as anteriores, mas reflecte inteligentemente, na sua estrutura, a evolução da protagonista. Os fragmentos das secções anteriores dão lugar a um texto contínuo e articulado – representante do equilíbrio alcançado.
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