Poderia, com alguns ajustes e dispensando o capítulo final, ser um livro fora de ordem, da série policial assinada por João Tordo – muito à imagem do que acontece, por exemplo, com alguns livros de fantasia. “Os Dias Contados” (Companhia das Letras, 2024), terceiro capítulo da história protagonizada pela improvável dupla Pilar Benamor/Cícero Gusmão, é um regresso no tempo para conhecermos a história de Pilar, quase como se assistíssemos às origens do nascimento de uma super-heroína. Uma heroína que, por esta altura, se vê mergulhada numa “luta contra o fantasma do seu pai, contra os seus demónios, contra a própria força policial que devia protegê-la, contra a injustiça”.
Para além de brincar com as alternâncias temporais, jogo clássico do universo policial, João Tordo assenta a trama em dois acontecimentos e protagonistas distintos: Flores Baltazar, compositor em pousio que, depois de umas malogradas férias na neve, parece ter feito recair sobre si e toda a família uma esmerada maldição; e a descoberta do cadáver de uma mulher num clube nocturno, acontecimento que de alguma forma poderá estar ligado a um caso nunca resolvido pelo pai de Pilar, que se tornou a sua grande e trágica obsessão.
Pelo caminho há temas como o tráfico humano, mas é sem dúvida Pilar que carrega este “Os Dias Contados” ao colo, com todas as suas obsessões e uma visão da lei deixada de fora de todos os manuais oficiais. Uma investigadora impulsiva e obstinada, apaixonada pelos seus mortos, em busca de expiar, como a certa altura o disse Cícero, “os seus pecados imaginários”. Alguém que poderia ser companheira de copos de uma Lisbeth Salander, partilhando com esta os sentimentos contraditórios despertados pelos homens.
Depois de “Águas Passadas” – cartão-de-visita de Pilar – e “Cem Anos de Perdão” – que, da geografia portuguesa, saltou para a pequena e remota ilha de St. Dismas, ao largo da Inglaterra -, “Os Dias Contados” mostra que João Tordo se instalou confortavelmente no território do policial, ao mesmo tempo que continua a alimenta os temas que têm atravessado a sua escrita: melancolia, dor, sofrimento, depressão e a proximidade da morte. Uma coisa é certa. Haverá um quarto livro, prometendo a reedição da temível e estranhamente compatível dupla Pilar/Cícero. Uma série longe de ter os dias contados.
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