A discussão não será tão velha quanto a questão do ovo e da galinha, mas tem movido e extremado opiniões ao longo dos tempos, muitas vezes levadas a vias de facto: poderemos separar o criador e a obra ou, dito de outra forma, será possível admirar o lado criativo de alguém que, na sua essência, é parente – e por vezes comandante – da pior espécie de escroques?
Na introdução a “Os Contos Mais Arrepiantes de Howard Philips Lovecraft” (Saída de Emergência, 2018), Luís Corte Real, depois de confessar que não gostaria de conhecer pessoalmente H.P. Lovecraft – e de lhe atribuir adjectivos tão fofinhos como “xenófobo” e “racista” -, mostra uma especial devoção pela sua escrita “pesada, adjectivada e arcaica”, falando dele como “um genial criador de mundos”, inventor de um imaginário por onde se passeiam “criaturas hediondas” e “cidades imaginárias” – e onde os heróis se limitam “a enlouquecer e a morrer”. Alguém que, segundo Corte Real, deixou um mantra ao mundo que não deverá ser gravado em azulejo ou T-Shirt sob pena de aumentar o consumo de antidepressivos: “Somos frágeis e não há esperança para nós”.
Quanto a António Monteiro, que assina a extensa e muito bem desenhada introdução ao livro – acompanhada de fotografias do autor -, salienta, em relação a Lovecraft, uma assexualidade manifestada desde muito cedo, a paixão imensa pela astronomia, a importância da figura do avô, o declínio financeiro da família e a convicção da insignificância da transitoriedade da espécie humana, a que não atribuía a existência de uma alma. Lovecraft que foi, diga-se, uma criança precoce: falou com um ano, recitou versos com dois, leu com quatro e escreveu prosa e poesia com sete.
Após ter publicado seis volumes de contos do autor, a Saída de Emergência lançou no ano passado uma esmerada edição que, para além de ter todo o ar de um achado literário – a começar pela capa dura, onde no fundo roxo assentam inscrições em prateado a que não faltam caveiras e tentáculos de criaturas marinhas -, pode ser vista como uma súmula da obra Lovecraftiana, reunindo 22 dos seus contos mais arrepiantes.
O ar de celebração não se limita, contudo, à capa. A acompanhar uma paginação exemplar, com todo o ar de livro de uma época que não nos passou pelos dedos, cada um dos 22 contos – há pérolas como “O Intruso” ou “Herbert West, o Reanimador” – é ilustrado por um artista nacional, com nomes como Filipe Andrade, Ricardo Cabral, Bárbara Lopes, Joana (Mosi) Simão, Joana Afonso ou Miguel Mendonça a recriarem a negro o imaginário dos contos de Lovecraft, responsável maior pela literatura de horror ter deixado de ser só sobre vampiros, fantasmas e bruxas – e por ter deixado influências e inspirado autores modernos como Neil Gaiman, Alan Moore ou Guillermo del Toro. Para ler e guardar com estima ao lado de “Os Melhores Contos de Edgar Allan Poe”, uma igualmente incrível edição com o selo da Saída de Emergência.
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