Sempre que navegamos no território Pessoano, entramos no território do mito. No caso de Ricardo Reis, e segundo o próprio Fernando Pessoa, estamos perante um médico que “nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mez, mas tenho-os algures), no Porto […] um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte [do que Caeiro]“. Um tipo “de um vago moreno mate“, “latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria“, que teria saído de Portugal para o Brasil em 1919 por ser monárquico.
De todos os heterónimos, Ricardo Reis é aquele que tem uma biografia mais curta mas, ainda assim, sujeita a três diferentes nascimentos, chegando mesmo a trocar-se o local do parto do Porto por Lisboa. Como em tantos outros casos, são mais as perguntas do que as respostas, como as levantadas por Jerónimo Pizarro na introdução: “Terá sido sempre monárquico? Que tipo de monarquismo foi o seu?” Alguns nós por desatar que se estendem à vida do próprio Pessoa, como refere Pizarro:
“Nem a vida, nem a obra de nenhum dos heterónimos ficaram, aquando da morte de Pessoa em 1935, perfeitamente estabelecidos. Até a vida do próprio Pessoa continua rodeada de mistérios e a sua obra, por publicar. Esta última conhece-se pela modalidade habitual: uma série de entregas póstumas e sucessivas.”
Em relação a Ricardo Reis, a poesia apareceu publicada pela primeira vez em 1946, pela Ática. Quanto à prosa, apenas em 2003 pela Assírio & Alvim. “Obra Completa de Ricardo Reis” (Tinta da China, 2016), mais uma peça do puzzle Pessoano publicada pela Tinta da China, é o primeiro livro a reunir a poesia e a prosa do heterónimo mais velho de Pessoa, e também o primeiro a pôr em diálogo as últimas edições da poesia Ricardiana.
Nesta edição, que respeita a ordem cronológica, definem-se quatro núcleos: o Livro de Odes, projectado em 1917 (com odes escritas entre 1914 e 1917); o “Livro Primeiro”, publicado na Revista Athena (1924); o conjunto de odes avulsas publicado na Revista Presença (1927-1933); e o conjunto de “Outras Odes e Poemas” (1914-1935), que não foram indexados nem publicados em vida de Pessoa. Quanto à prosa, destaca-se um prefácio que nunca conheceu a luz da edição, dedicado à poesia Caeiriana – iniciado por volta se 1915 e constantemente retrabalhado até 1929.
“O que pode ou não ser atribuído a Reis permanecerá sempre em aberto“, lê-se na introdução. Certo é que estas Odes são um portento poético sobre a brevidade da vida, assinadas pelo mais introspectivo e melancólico heterónimo de Fernando Pessoa.
“As rosas amo dos jardins de Adonis
Essas voluveis amo, Lydia, rosas,
Que no dia em que nascem,
No mesmo dia morrem.
Aluz para ellas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visivel.
Assim façamos nossa vida em um dia.
Inscientes, Lydia, voluntariamente
Que ha noite antes e após
Do pouco que duramos.
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passava o vento, quando havia vento,
E as folhas não mexiam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos maos ruido no que existe
Do que as folhas das arvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assiduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das arvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fóra
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, á beira mar, o meu indicio
Na areia o mar com ondas trez o apaga,
Que fará na outra praia
Em que o mar é Saturno?”
(Ode 33, 11-7-1914)
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