É com uma citação de Fausto, de Goethe, que Sergei Lebedev inicia “O Veneno Perfeito” (Dom Quixote, 2022), revelando de imediato sentido de oportunidade e ironia. As duas obras têm em comum o facto de serem protagonizadas por cientistas que buscam conhecimento e fazem pactos com o diabo, mas Lebedev substitui a criatura sobrenatural de Goethe pelo poder político.
Este é um livro baseado na prática de envenenamento de dissidentes, cuja intriga gira em torno de duas personagens: Kalitin, um químico que sintetizou toxinas para o regime soviético até ter desertado para a Alemanha, e Cherchniov, um agente enviado para assassiná-lo com um dos seus próprios venenos.
Conhecemos Kalitin aos 70 anos, quando enfrenta o diagnóstico de uma doença fatal. Descobrimos o passado através das suas memórias, começando pela infância numa cidadela secreta, onde trabalhavam os pais e o tio Igor, um cientista imune a perseguições políticas graças à sua genialidade, que o tornava indispensável e lhe permitia viver sem medo. É ele o modelo do jovem Kalitin, que se torna “um estudioso da morte”, servindo o sistema sem alguma vez ter sido um comunista convicto, e alcançando o auge da sua carreira ao criar o Neófito, uma substância rapidamente letal e indetectável.
É inglório tentar vislumbrar, nas memórias de Kalitin, remorsos pelas atrocidades cometidas no âmbito das experiências. Ao fugir para ocidente, quando o colapso da União Soviética destrói o seu modo de vida, deseja vingar-se do seu antigo povo – “que desejava uma coisa chamada vida livre” – e respectivos líderes. Espera ser bem recebido e obter meios para prosseguir a investigação, mas desilude-se. Ainda assim, continua a pensar nos seus venenos como filhos e a acreditar que a capacidade de fazer com que a morte chegue despercebida e não deixe rasto é o poder supremo. O único arrependimento é ter desertado precipitadamente. Inconformado com a iminência da sua própria morte, não se coíbe de planear mais um homicídio, de modo a encetar outra fuga, tudo pelo sonho de oferecer o seu saber a quem possa curá-lo e oferecer-lhe uma vida nova.
Perante a frieza de Kalitin, Cherchniov quase parece um ser humano decente. Apesar de ter a sua quota parte de torturas e assassinatos no currículo, ama imensamente o filho e não é desprovido de empatia, como demonstra a compaixão involuntária que lhe desperta a leitura do processo do seu novo alvo, ocorrendo-lhe que estão “ligados como som e eco, como duas substâncias que compõem um veneno binário”.
A amoralidade de ambos, bem como a “criatividade em nome do mal” do regime que lhes moldou as vidas, prende-nos como uma deformidade que atrai o olhar. Atravessada pelo tema da responsabilidade ética dos cientistas, a narrativa desenvolve-se a um bom ritmo, com trechos de prosa inspirada, mantendo um equilíbrio perfeito entre as perspectivas de Kalitin e as de Cherchniov – cuja viagem é rica em imprevistos –, até nos oferecer um final surpreendente.
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