“«Lá» era um passado. Um lugar do qual pareciam ter saído na condição de nunca mais o mencionarem. Uma palavra que ardia como o coto de um braço amputado.”
A frase não pertence ao mais recente livro de Karina Sainz Borgo, “O Terceiro País” (Alfaguara, 2023), mas sim a “Cai a noite em Caracas”, livro anterior da mesma autora, estabelecendo dessa forma uma relação com este novo romance. Há um corte. O passado é o passado e não regressamos à história daquela mulher que vimos fugir. Há um desfecho amputado, que deixa o leitor expectante por um terceiro livro, mas a escolha desta frase não é inócua. Aliás, estabelece uma linha ténue que une os destinos das mulheres destas duas histórias. São conterrâneas, na fuga e no limbo que é a fronteira à beira de uma fronteira, esse terceiro país, esse chão de mortos e de almas amputadas.
“Já ouviste o queixume de um morto?
Não, senhora Eduviges.
-Antes assim.“
São estas palavras de Juan Rulfo, do livro “Pedro Páramo”, que Sainz Borgo escolhe para abrir este seu relato. Claro que farão todo um outro sentido se já tivermos chegado a Comala à procura de Pedro Páramo, descobrindo que o mais vivo que por lá havia eram as memórias, o rancor, a canícula de Agosto e os queixumes. O mesmo que acompanhava Angustias Romero ainda antes de chegar ao Terceiro País. Aí, as arestas do lugar – e as da própria Visitación Salazar – engrossaram as escamas, que precisou deixar crescer para se tornar ainda mais sobrenatural.
Os cadáveres acumulam-se e, se não for a mítica Visitación Salazar, ninguém vem para os sepultar. A não ser o vento e o pó, cobrindo-os apenas com um esquecimento palpável que não esconde o esquecimento e o abandono que pautaram o fim daquelas vidas.
A história de Angustias é a de um ser abandonado à dor. Aparentemente, tudo nela secará e entorpecerá até cicatrizar. Trazia os filhos mortos nos braços e só lhes queria dar um pedaço de chão onde os pudesse vir visitar e chorar – e, aí, mesmo voltamos ao livro anterior: não se deixa o chão dos nossos mortos sem por lá morrermos. Por isso Adelaida diz que se pariu para poder partir. Angustias não quer partir. Aquele cemitério será o seu novo país, e também ela quererá fazer leis.
A lei era de quem tinha as gengivas mais marcadas, fosse pelo mercúrio que inundava as águas, fosse pelo poder que dava dentes de ouro e transformava assassinos em patriarcas. Um poder que cimentou uma ditadura, que enterrava homens e mulheres em medo e violência. Um regime que espicaçava fileiras de gente, alimentando-lhes o ódio e a crueldade que já traziam dentro de si. O cacique era Abundio que, tal como os Páramos, pai e filho, sucederam-se e perpetuaram o terror. Homens ou mitos? Demónios. Mas mesmo os demónios acumulam fantasmas nos espelhos retrovisores.
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