Às vezes, a alma com que um autor que veneramos venera outro autor é mais do que suficiente para nos deixar rendidos, não tanto à arte que o influenciou mas sim à descrição em êxtase que se eleva mais alto que o objecto de admiração.
A poesia de Rimbaud chegou à velhice algures entre uma cirrose da viragem de século que antecedeu à do milénio, sem alcoólicos anónimos ou demais terapias de grupo, e uma paragem respiratória por causas naturais, vulgo, da velhice, como diria Cícero. Isto para dizer, como há mais capazes que Henry Miller, há muitos mais poetas marcantes que Rimbaud para a literatura universal – a não ser que se engavete as coisas por períodos e geografias bem delimitadas no friso cronológico. Mas, mais interessante que a poesia do cânone francês, é a análise biográfica e de influência que dele faz Miller em “O Tempo dos Assassinos” (Antígona, 2016) – sendo este, por sua vez, o escritor dionisíaco por excelência, que nem Nietszche sonhou que seria solto entre nós nos mais ardentes delírios febris.
Muita poesia envelhece mal, como sabemos, se não mesmo a grande maioria. Pensem, por instantes, escusam-se de perder muito tempo a ruminar, na quantidade de desejos de génio da lâmpada entre homens e mulheres, verdadeiros suplícios católicos para se elevarem a Poeta. Esse título nobiliárquico pertence a um lote mais restrito que os viscondes ou clérigos de Portugal. Trata-se da arte que a vida imita.
Poeta precoce, Rimbaud terminou a sua vida curta longe de Paris, como comerciante desse ouro negro que é o café da Etiópia. Morreu só, deixando para trás sucessivos desaires amorosos e uma obra de referência – “Uma Temporada no Inferno”, escrita quando tinha apenas dezanove anos de idade. E, de maneira a perpetuar o mito, o discorrer apaixonado de Miller é de um contágio terminal, estado morto-vivo, como se de septicémia poética se tratasse. Em torno desta paixão paira uma aura de necrópole, nela contida os feitos da civilização humana sem excepções. A esperança para o futuro é pouca; o tempo, esse, dos assassinos.
Rimbaud e a sua temporada no inferno são a memória de formação literária de Miller, e é só natural que lhe diga mais que a você. Mas se Miller for a sua memória de formação literária, podia lê-lo a elucidar-lhe sobre a criação de anémonas em viveiro, que seria sempre um prazer perder-se no maior enigma literário desde os retweets de Diógenes do feed de Heraclito de Éfeso.
Fica-nos o dilema planetário: está a nossa espécie imbuída nas correntes de pensamento de sucessivas gerações para que fim prático, se estamos na vertigem do erradicar completo pelo terror nuclear que corroeu em chama a pele dos nipónicos e nos assombra desde as epifanias de Einstein? O relógio atómico anuncia menos de um minuto.
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