Vamos imaginar que os desejos, planos e modelos de vida amorosa e familiar que sempre nos foram apresentados como desejáveis, únicos e ideais são, afinal, diferentes. Tão só diferentes. Nem melhores nem piores. Diferentes. Em “O Sexo Inútil” (Sextante Editora, 2016), de Ana Zanatti, há um desafio: o de perceber e aceitar que o importante é amar pessoas, respeitar o outro e conter o egocentrismo de se julgar tudo se conhecer e determinar.
“Somos treinados para conviver com o que devíamos combater, e combater ou discriminar o que devíamos incluir e abraçar. Convivemos tranquilamente com a pobreza, a violência e a miséria de espírito. Temos sido educados a não dignificar, ou a olhar de viés e criticar, algumas diferenças entre as quais a transexualidade e o transgenerismo, e as orientações sexuais não normativas, como a homossexualidade. Um assunto para não ver, não nomear, muitas vezes nem dentro de nós, ou para maltratar.”
Tendo por base correspondência recebida ao longo de 40 anos, com questões relacionadas com o preconceito e a dignidade e testemunhos de pais e jovens, Ana Zanatti organiza e partilha uma profunda reflexão sobre pessoas LGBT. São testemunhos reais ampliados pela sua grande sensibilidade para organizar pensamentos, processar emoções e reciclar comportamentos, encontrando mesmo nas atitudes mais extremadas e hostis uma oportunidade de mudança e de reconversão.
“O que é que define normalidade?”, pergunta Joana, ela própria fruto de um exacerbado e aparentemente intransponível normativo familiar e social. Integrando uma família organizada, com estatuto social e económico, com projectos pré-definidos para cada um dos seus elementos, Joana vive o conflito interno, a dificuldade em se moldar pelo determinismo familiar, em se rever nos comportamentos da maioria dos colegas e amigos, em se encontrar nos projetos que se sucedem para si. A pretexto desta jovem, Ana Zanatti reencontra-se com as suas próprias vivências de juventude, de descoberta e afirmação pessoal e familiar, num exercício de profunda generosidade com o leitor. Ao longo do livro respira-se oportunidade perante a adversidade e aceitação perante a imprevisibilidade, formas de processamento e gestão da efemeridade: “A vida é uma bola de sabão. Uma picada de uma vespa e ela vai-se embora.”
“A maior batalha é connosco, para vencer fantasmas, traumas, medos, ideias e conceitos que nos foram inculcados em crianças e ao longo da vida.” Ao longo do livro o registo evocativo é dominante. Evolui-se e elabora-se a partir daquilo que cada testemunho traz, das profundas batalhas interiores impostas pelo tirano “juiz interno” que todos transportamos e que, tantas vezes, nos impele à negação e à fuga. Uma fuga cega, dolorosa e inconsequente, que retarda a aceitação do que se sente e deseja.
Um dos muitos ensejos que a autora nos apresenta é de nutrição, de mimo, de alimento à auto-estima, de respeito e admiração individual. Sermos bons ímpares para sermos bons pares, construindo relações saudáveis.
Alcançado o equilíbrio individual, o desafio permanece pela dificuldade de aceitação, nomeadamente pelos pais, aqueles que idealizaram a reprodução segura de modelos amorosos e familiares, quiçá para se convencerem que o que vivem é a única forma possível de realização – ainda que possam já não o sentir como tal. Entre muitas outras coisas, falta-lhes “ouvir amorosamente” os filhos, abdicarem do egoísmo de quem tudo quer e pode a pretexto da ligação genética.
O trajecto lançado com este livro permite que em diversos quadrantes da sociedade se reflicta sobre o muito que está por fazer, por parte das instâncias formais, com responsabilidades de produção e intervenção em áreas públicas, como do ponto de vista individual, pela forma como cada um de nós constrói o seu mapa mental sobre a intimidade. Na educação dos jovens, futuros pais e mães, muito é possível fazer, em meio familiar como escolar – e até religioso -, promovendo-se desde logo o conceito de respeito e responsabilidade: “O ser humano tende a destruir aquilo que não entende.”
Profissional com uma longa carreira no teatro, televisão e cinema, Ana Zanatti tem vários títulos publicados, entre livros infantis, romances e poesia. Já antes se socorrera do retrato de uma sociedade que por vezes se revela preconceituosa e paternalista, oprimindo através dos laços familiares e do amor. Servindo-nos das suas próprias palavras em O Sexo Inútil, “os livros são grandes amigos e companheiros, ajudam-nos a perceber que não estamos sós nas nossas dúvidas, sonhos, medos, paixões, o que for.”
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