Por mais milénios que passem, os antigos mitos gregos parecem manter a sua força primordial, continuando ainda hoje a inspirar artistas das mais diversas áreas. Perante a pluralidade de versões acerca de certas figuras e acontecimentos, Hannah Lynn opta por reconstituir o percurso de um dos monstros mais famosos da era clássica, em “O Segredo da Medusa” (Editorial Presença, 2023).
Em regra, a Medusa surge na memória colectiva sob uma forma horrenda, com serpentes no lugar do cabelo e o poder de petrificar aqueles cujo olhar se cruza com o seu, mas este livro vai além daquilo que a maioria sabe acerca da sua história, remontando ao tempo em que era humana. Revela-nos, assim, o seu passado, enquanto jovem sensata e contemplativa, que julga ter encontrado o seu lugar no mundo quando se torna sacerdotisa no templo de Atena. Porém, os deuses conseguem ser “mais grotescos do que qualquer mortal”: atraído pela grande beleza de Medusa, Poseidon viola-a nesse espaço sagrado, ao passo que Atena, furiosa com tal profanação, não hesita em punir a vítima em vez do agressor, transformando-a num monstro.
Devastada, ignorando ainda o poder do seu olhar, a jovem procura refúgio no lar familiar, matando inadvertidamente os pais. Por sua vez, as duas irmãs mais novas revoltam-se contra Atena, sendo por ela castigadas com metamorfoses ainda mais cruéis, que agravam o sofrimento de Medusa.
Tal como ela, Perseu, o herói que surgirá para enfrentá-la, é aqui caracterizado com uma profundidade maior do que a transmitida pelas versões tradicionais da mitologia, sendo dado algum destaque à sua mãe, Dánae, igualmente obrigada a “aceitar uma vida que não desejava nem merecia em consequência da vontade dos outros”: filha de um rei, aprisionada numa torre por causa dum oráculo, concebe um filho de Zeus e é lançada ao mar para morrer, juntamente com o recém-nascido, sendo resgatada para uma vida humilde que acaba por ser perturbada, anos mais tarde, pela iminência de um casamento forçado, que o filho tenta evitar.
A conclusão do confronto entre Medusa e Perseu – ambos joguetes nas mãos de deuses rancorosos e volúveis – é conhecida, mas a maneira como se desenrola é original. Acima de tudo, a obra merece destaque por oferecer a perspectiva de uma protagonista duplamente silenciada: enquanto mulher, num meio onde só os homens detinham o poder de registar as suas palavras; e enquanto ser aberrante, apresentado ao mundo como algo que só existe para morrer às mãos de um herói ávido de provar o seu valor. A sua voz recorda-nos que, por vezes, é importante questionar as versões das histórias que a tradição favoreceu.
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