Alberto Manguel assina o Prefácio de “Rei-Sombra” (Tinta da China, 2022), romance da escritora e fotógrafa de origem etíope Maaza Mengiste, que arrebatou elogios da critica pela força da sua narrativa e a colocou como finalista do Booker Prize 2020. São diversas e poderosas as mensagens deixadas por este livro. Desde logo, pelo modo como retrata a forma como um povo lida com a invasão e a tentativa de domínio por parte de outro, e a resistência individual de quem, subjugado pela estratificação social, procura sobreviver e superar as maiores atrocidades e atropelos à dignidade humana. No concreto, estamos na Etiópia, anos 30 do século passado, testemunhando a tentativa de domínio levada a cabo por Itália – e, a montante disso, a ditadura social existente dentro da própria sociedade etíope.
Neste relato, a presença e o valor da identidade individual e colectiva de pessoas que se transformam e fazem da luta e da resistência são, mais do que exercícios programados de guerra, verdadeiros feitos extraordinários e glórias, que contrariam os exercícios mais probabilísticos. Para além de tudo, fica mais uma vez o alerta para a natureza abominável da guerra, de qualquer conflito que, independentemente do seu fundamento, se revele sempre muito mais devastador do que qualquer estratega possa antever. A demonstração de que a guerra deve ser o último ratio de qualquer opção estratégica.
Uma das riquezas extraordinárias desta narrativa reside no facto da autora aportar ao enredo elementos de enquadramento e formação das personagens principais, servindo-se de janelas de apresentação que enriquecem o texto. Conhecemos como se forma Hirut, a escrava que se torna central no enredo; como se transforma a jovem, bela e distinta Aster numa destemida guerreira; até que ponto gere o comandante italiano Carlo Fucelli os mais temíveis receios; como sobrevive Ettore à dupla ameaça de, enquanto soldado de Mussolini, ter ascendência semita.
Ao destronar da crença no poder exclusivamente masculino, demonstrando o valor da presença feminina em várias dimensões das guerras, Maaza Mengiste evidencia o valor do feminino, no desafio à autoridade masculina, aos senhores da guerra, organizando-se e surpreendendo. Elas estiveram lá, no apoio logístico de retaguarda, mas também como estrategas e verdadeiras amazonas, invertendo o quotidiano que ignorava a sua vontade e toldava liberdades, obrigando-as a cumprir papeis sociais, usando-as como moeda de troca entre famílias: os casamentos combinados e forçados, a dureza no exercício da masculinidade, o desequilíbrio de papéis em família. Para muitas das protagonistas desta narrativa, antes de conseguirem evidenciar o seu poder, superaram o medo de ser mulher, do desconhecido e do sofrimento. Umas escravas, outras senhoras; todas, alvo da barbaridade no exercício da autoridade masculina e na afirmação da posse.
“O mundo deve mover-se de determinadas maneiras para que tudo fique intacto, e as raparigas com cicatrizes devem reconhecer o seu lugar entre quem lhes faz as ditas cicatrizes. “
“O Rei-Sombra” é um livro que pede respeito pelos cenários de guerra descritos, desde a estratégia ao combate corpo a corpo, à presença da morte, ao desequilíbrio de forças entre etíopes e italianos, ao valor surpreendente da estratégia dos mais fracos, à insanidade de qualquer propósito que justifique o recurso a meios bárbaros de combate que revelaram indiferença pelo facto de dizimarem populações inteiras, mulheres e crianças indefesas. Acompanha-se a evolução das estratégias de resistência e de domínio, por parte de quem quer mandar e por quem não aceita a subjugação. É inspiradora a força que se retira do olhar, do silêncio e da passividade de quem é dominado, maltratado e humilhado. A sobrevivência é então muito mais que respirar, muito mais que prosseguir, valendo-se do poder da imagem que cada um preserva, da integridade individual e da vontade de um povo. Sofrer parece, nestas circunstâncias, uma figura de estilo, algo que, em vez de aniquilar, embeleza e salienta a identidade.
Por último, salientar que o texto é enriquecido por personagens diversas, desde os nativos mais ou menos resolutos quanto à resistência e à sobrevivência, aos ocupantes que se alimentam da crueldade e àqueles que procuram transformar o abominável em algo diferente – como Ettore, o guarda italiano que regista a morte e a (in)dignidade em fotografias intemporais. Quantas gerações serão necessárias para apagar estes registos de barbárie? Bastará destruir os seus registos fotográficos? Desaparecerem os portadores de memórias? Sucumbirem os que lhe sobreviveram? Eclipsarem-se os que se interessem por este tipo de relatos? Talvez lê-los continue a ser, em pleno século XXI, um exercício de resistência, de preservação de um passado que se deseja na memória de todos, para que se cuide de um futuro que se sabe incauto.
1 Commentário
Um livro que descreve uma temática muito atual. A invasão de um pais por outro, recentrando não só a resistência do povo, mas a criatividade com nas estratégias concebidas, mesmo ilusória para, não só amedrontar inimigo, mas também auto motivar a população.
No plano dos valores, a obstinação de um povo em aceitar a sua subjugação e a transformação dos sujeitos da narrativa no desenvolvimento dos capítulos do livro.
A guerra muda as pessoas
Parabéns Francisca Moura