Porque nem só de bares e bonecada é feita a vida de Luís Afonso, que nos habituámos a ver na já clássica tira Bartoon do jornal Público, a Abysmo lançou recentemente “O Quadro da Mulher Sentada a Olhar Com Cara de Parva” (Abysmo, 2016), livro que reúne seis pequenos contos e que mostra que há futuro para lá da ilustração. Algo que, para os mais atentos, já havia sido anunciado em “O Comboio das Cinco”, livro que gravitava em torno de Lopes, o escritor pós- moderno, uma pequena pérola escondida entre a concha do humor descontrolado, a crítica social e o desabafo filosófico.
“O Operário” dá-nos a conhecer a rotina de um casal esquerdista, ele professor de filosofia, ela investigadora na área da Bioquímica, que decide – ou melhor, uma decisão do lado masculino do casal – levar para casa, como se de um animal de estimação se tratasse, um elemento de uma espécie em extinção devido à evolução dos processos produtivos: um operário. “Comprei um operário sem estudos, um matulão mais para o calado que me pareceu uma boa escolha.” O que, vai-se a ler, não terá passado de um presente envenenado.
Em “O Som das Sirenes” damos de caras com um mirone assumido, completamente obcecado por sirenes. Ou, posto de outra forma, um louco que não quer ser dado como tal para poder ir para a prisão.
“A Empregada Doméstica” põe nas mãos do protagonista uma herança com duas alíneas: nunca se desfazer da gata – pelo menos até esta finar – e, muito menos, da Antonieta, a empregada que está na família há 30 anos. Ela e a sua doença incurável. Um conto que mostra que a técnica de varrer para debaixo do tapete está longe de ser a mais eficaz.
“A Reunião” é o lugar de uma secretária tão psicótica, tão psicótica, que leva a sua obsessão até um salto de queda livre com poucas chances de sobrevivência.
“Os Cães” apresenta-nos a uma personagem que odeia cães e que, para vencer esse medo profundo pela espécie de quem se diz ser a mais amiga do homem, compra um pastor alemão. Um vislumbre de um mundo sem cães e gatos que mostra que o homem nunca será capaz de viver sem animais de companhia. Sejam eles vacas, patos ou… porcos vietnamistas.
A fechar temos o conto que dá título ao livro, onde numa exposição de quadros de Van Heijst a narradora faz uma pequena confissão, dizendo-se violentada pelo facto de, em miúda, o pai ter abusado “de uma criança indefesa” e de lhe ter metido “à força na cabeça todos os Van Gogh, Matisse, Picasso, Vermeer, Renoir, Dalí, da Vinci, Monet, Munch, Modigliani, Velázquez e outros tais que couberam.” Alguém que se tornou tão obsessiva que, no momento em que redige as linhas com que se cosem este conto, promete uma coisa: “Meti na cabeça que não saía daqui sem saber por que motivo a Hanna que o holandês pintou a óleo está sentada a olhar para o ar com cara de parva, e não saio mesmo.”
Com um grande sentido de poupança, uma prosa acutilante e um sentido de humor que impele a uma reflexão mais ou menos profunda sobre a vida, Luís Afonso atravessou o portal situado entre a ilustração e o conto, e fê-lo de forma surpreendente.
Sem Comentários