Depois de um sucesso como “O Quarto de Jack”, é normal que surja alguma reticência a ler outro livro de Emma Donoghue. Será que é possível bater um livro arrebatador, com incríveis reviravoltas e personagens que nos entram pela casa adentro? A resposta é fácil: sim. E mais, esta é uma autora a que se deve ter atenção. Emma Donoghue veio para ficar e os seus livros prometem leituras emocionantes e que perduram para lá do final do último capítulo.
“O Prodígio” (Porto Editora, 2017) decorre no século XIX, e acompanha a história de uma enfermeira que é levada para testemunhar durante duas semanas uma rapariga que se recusa a comer há meses. Perante este milagre, é formado um comité que pretende que se esclareça esta situação inusitada. Ainda que a história seja baseada nos relatos verídicos de jejuadores ao longo dos séculos, “O Prodígio” consegue muito mais do que romancear este tipo de acontecimento. Na verdade, tudo neste livro aponta para uma leitura e interpretação perfeitas do caso: a premissa, a estrutura, a criação de suspense, a tridimensionalidade das personagens, o desenvolvimento da narrativa, as dúvidas que marcam o caminho.
Em pleno século XIX, no fundo do Reino Unido, surge a maior das questões: ciência ou fé? E o leitor é levado nesta incerteza ao longo dos capítulos, à medida que cada um dos dias da quinzena passa. É verdade que a menina é jejuadora? Se sim, como? Estarei a ser ludibriado? Se sim, como? Para onde caminha o livro, afinal? O rumo é incerto, dado que não é fácil encontrar pistas que ajudem o leitor a chegar a uma conclusão precipitadamente: se a história assenta em fundamentos religiosos, a sua leitura não é certamente igual aquela que seria se os fundamentos forem científicos. Entra-se, então, pela voz da protagonista, a enfermeira que vai assistir ao milagre e relatar o seu parecer, numa discussão sobre o peso da religião na vida familiar, numa altura em que a medicina dava poucos e curtos passos. Até que ponto estão estas pessoas a estender a sua fé? Quando é que a fé se transforma em fundamentalismo? Como é que se aceita algo que a ciência nega?
Incrivelmente envolvente, “O Prodígio” entra pela casa desta família adentro, mostrando a vida da aldeia por cima do ombro, e mostra-nos a realidade paupérrima do interior da Irlanda. A fome e a crise, o relacionamento familiar, a influência da Igreja na comunidade, os pequenos grupos influenciadores de poder, a opinião pública, a fé extremada e a falta dela, a incompreensão de outras fés, o papel da ciência e a sua incompreensão. Uma leitura imperdível.
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