Algumas histórias terminam em casamento. “O Perfume da Dama de Negro” (Livros do Brasil, 2020) começa com um. O autor é Gaston Leroux (1868-1927), um repórter formado em Direito que, em 1907, trocou o jornalismo pela literatura, e os noivos são personagens do seu primeiro êxito literário, “O Mistério do Quarto Amarelo”. Ambos os livros integram a Coleção Vampiro, dedicada aos mestres da literatura policial.
O rol de convidados para a boda não poderia deixar de incluir o salvador do casal: Rouletabille, um repórter cuja verdadeira profissão é “começar a raciocinar quando os outros já tinham acabado”. Mas este exibe um comportamento estranho, enquanto o seu fiel ajudante Sainclair, que também desempenha o papel de narrador, toma o ambiente lúgubre da velha igreja por um mau augúrio.
Com efeito, a felicidade dos recém-casados não tarda a ficar ameaçada, a partir do momento em que, durante a viagem de lua-de-mel, avistam o facínora Larsan, que julgavam morto. Este foi o primeiro marido da noiva, o que explica, em parte, o facto de não apelarem à protecção das autoridades, receando “o pior dos escândalos e a mais assustadora das catástrofes”, neste ano de 1895 em que a acção decorre. Em vez disso, refugiam-se na impressionante propriedade de um casal amigo: uma fortaleza de origem medieval banhada pelas águas da Côte d’Azur, onde se reúne um grupo ecléctico. Em resposta ao seu pedido de socorro, Rouletabille não tarda a juntar-se-lhes, acompanhado por Sainclair.
A imponente fortaleza – que o narrador descreve em pormenor – depressa adquire uma atmosfera sombria, pois as barricadas montadas não impedem a difusão de um medo contagioso, alimentado por suspeitas insidiosas, à medida que as personagens se sentem observadas e se interrogam acerca da identidade que o temível Larsan, um mestre do disfarce, poderá assumir.
Paralelamente, Rouletabille empreende uma demanda muito pessoal, na qual é impelido a seguir “o perfume da dama de negro” para desvendar segredos familiares que marcaram o seu passado. Um pormenor interessante é a participação de Gaston Leroux na história, como personagem que, na qualidade de jornalista, se cruzou com o protagonista durante a infância deste e contribuiu para aquilo em que ele se tornou.
A leitura prévia de “O Mistério do Quarto Amarelo” não é indispensável para se apreciar este livro, mas é altamente recomendável, pois o narrador alude recorrentemente a acontecimentos aí descritos, os quais continuam a influenciar o comportamento das personagens.
“O Perfume da Dama de Negro”, publicado pela primeira vez em 1908, destaca-se de outros romances policiais devido à sua estrutura original: até mais de metade do livro não se verifica crime algum, e mesmo quando corre sangue, não é claro se houve homicídio. Outro factor distintivo é o recurso a uma figura detectivesca mais jovem do que o habitual, obcecada por não se deixar seduzir “pelo lado exterior das coisas” e decidida a não procurar o inimigo onde ele se mostra, mas sim “em toda a parte onde ele se esconde”.
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