Como deve agir um candidato a escritor perante a rejeição daquilo que considera uma obra-prima? Eis o dilema que enfrenta António Burnay, protagonista de “O Pacto com o Diabo” (Trebaruna, 2023). Porém, o que o impele para a literatura não é uma inspiração ardente, nem o desejo de transmitir uma mensagem, mas sim a ambição de alcançar fama e fortuna – e poder escapar à monotonia da função de empregado de escritório também não seria nada mau.
Em poucos meses, Burnay redige uma história que podemos realmente classificar como original, intitulada “O Limoeiro”, da qual muito se orgulha, mas que nenhuma editora se dispõe a publicar. Perplexo, investiga em vão os factores determinantes do êxito literário, não obtendo esclarecimentos no Google, nem nas tertúlias do Grémio Literário, nem num curso de escrita criativa. Decidido a imitar os grandes escritores contemporâneos, tenta descortinar o mínimo denominador comum do sucesso em obras de José Saramago, António Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares, acabando por combinar o estilo dos três num princípio de livro involuntariamente hilariante, que não desenvolve. Por fim, embora a busca de inspiração no quotidiano pareça infrutífera, a visita ocasional a uma feira do oculto revela-se produtiva, pois cruza-se com a Musa Inspiradora, que lhe propõe um pacto com o Diabo.
Por ocasião dessa cerimónia, é-lhe explicado pelo Grande Bibliotecário – outro representante do Diabo na terra – que o mafarrico não está satisfeito com o rumo que a literatura tem seguido: “Estão a ser adorados falsos deuses. Lê-se mais, mas lê-se pior. Os verdadeiros escritores foram destronados pelos comerciantes da literatura. As grandes editoras preferem publicar uma figura pública a um autor clássico. […] O Diabo tem saudades do tempo em que os livros significavam cultura e os livreiros sabiam atender os leitores”. Escolhido para “restaurar o esplendor da literatura”, Burnay escreve, sob inspiração diabólica, “Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde”, “Aparição” e “O Ano da Morte de Ricardo Reis” – obras que, neste universo paralelo ao nosso, nunca foram produzidas por Mário de Carvalho, Vergílio Ferreira e José Saramago, respectivamente. Colhe, assim, os elogios da crítica e os prazeres que advêm de ser “quase tão importante quanto um concorrente da Casa dos Segredos”, mas ressente-se do facto de detestar aquelas três obras, ao ponto de desafiar o Diabo insistindo na publicação de “O Limoeiro”.
Através do percurso deste anti-herói sem talento – onde marcam presença, entre outras figuras, uma prostituta que se torna igualmente famosa pela publicação das suas memórias, uma namorada que depressa se transforma numa “ex” despeitada e um vingativo rival literário –, João Cerqueira tece uma sátira impenitentemente desbragada à indústria que gira em torno dos livros, bem como às atitudes dos arrivistas culturais ignorantes, dispostos a tudo para verem os seus nomes nas capas.
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