“Quem se interessará pelas confissões de um literato falhado?”. A pergunta é lançada por Serguei Dovlatov em “O Ofício” (Antígona, 2018), um romance em duas partes atravessado pela autobiografia onde predomina um sentimento de inaptidão e uma permanente tristeza, apesar do aparente cenário de “existência biológica normal” de alguém que sonha e espera “invocar o fantasma da felicidade”.
O humor está, porém, presente ao virar de cada página, seja quando se descreve Tolstoi como um pequeno burguês, quando se aponta Dostoievski como um afilhado do pós-impressionismo ou se afirma que “os verdadeiros escritores só se interessam por si próprios”.
O livro debruça-se sobre o acto da escrita e está dividido em duas partes: “O Livro Invisível” e “O Jornal Invisível”. O primeiro conta as aventuras e, sobretudo, as desventuras de um escritor soviético, alguém com a sina de chegar sempre atrasado às coisas e que tudo faz para ser publicado no seu país – e que, em desabafo, diz isto: “Não cheguei a perceber quem manda na Literatura”. Alguém que recusa fazer cedências e critica o sistema, com um certo toque Kafkiano sobre a burocracia e a forma como a máquina humana está oleada. Tudo intercalado com uma série de apontamentos com o título “Solo para Underwood”, supõe-se que por ser o nome da máquina onde o autor escreveu o livro, e que estão entre haikus em modo stand up comedy e divagações imensamente existenciais.
Quanto a “O Jornal Invisível” acompanha a nova vida de Dovlatov nos Estados Unidos, onde se divide entre um início preguiçoso e uma tentativa de fundar um jornal para os expatriados russos em Nova Iorque, tendo de enfrentar as manobras de boicote de compatriotas russos detentores de um outro jornal mais conservador e seguidor do aparelho russo. “O paraíso é, no fundo, aquilo de que estamos provados”, diz Dovlatov no país das oportunidades e dos oportunismos, num texto atravessado pela ideia de liberdade, a duplicidade geográfica do bem e do mal e uma ideia daquilo em que consiste a escrita.
Serguei Dovlatov tem a capacidade de resumir, de forma sistemática e brilhante, longos períodos temporais, mostrando a natureza alienada, os pressupostos de grandeza e uma cultura adepta de beber até ao esquecimento, sempre com a mira apontada às censura e ao que os escritores enfrentam num sistema normalmente governado por idiotas. “O Ofício” mostra todo o absurdo da existência, numa tragicomédia com tanto de invenção como de pulsão humana.
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