Não se sabe se é da densidade do ar ou da qualidade da água, mas a verdade é que, no que diz respeito à arte de escrever contos, os argentinos, com Jorge Luis Borges à cabeça, parecem estar muito à frente de todos os outros. Um desses exemplos da arte de escrever contos chegou este ano às livrarias portuguesas com o título “O Nervo Ótico” (D. Quixote, 2018), assinado pela argentina María Gainza.
María Gaiza nasceu em Buenos Aires, onde foi correspondente do The New York Times e da ArtNews. Por mais de dez anos colaborou regularmente com a revista Artforum e o suplemento Radar do jornal diário Página/12. Orientou cursos para artistas e ateliers de crítica de arte, e foi co-editora da colecção Los Sentidos sobre pintura argentine. Em 2011 publicou “Textos Elegidos”, uma selecção de notas e ensaios sobre a arte do seu país. O melhor, contudo, estava reservado para este “ Nervo Ótico”, uma mistura insana de boa literatura, espírito confessional e uma crítica de arte que rejeita o academismo e aponta directamente ao coração, sempre na presença de uma fina ironia.
Ao todo temos onze contos, partilhando entre eles uma fórmula comum: parte-se quase sempre de um quadro, ao qual a autora liga episódios pessoais ou que envolvam amigos, familiares ou simplesmente gente com quem a vida tratou de a cruzar, rematando-se com uma crítica de arte em estado indie, daquelas que dificilmente se descobrem nos manuais de história de arte. Um pouco como o texto de Foucault sobre o Las Meninas, de Velázquez, mas escrito por Jarvis Cocker ou Marlon Williams. Mas sempre com um raro talento, conseguindo comprimir um romance da magnitude de um “Guerra e Paz” em meia dúzia de páginas, recorrendo a uma espécie de mantra que é repetido em vários pontos do livro: “Escreve-se uma coisa para contar outra”.
Por estas páginas passam ícones como El Greco, Courbet ou Toulouse-Lautrec, entre outros menos conhecidos como Cándido López ou Hubert Robert, mas é nas entrelinhas desta falsa enciclopédia de arte independente que o leitor ascende ao olimpo da escrita. Aliás, a literatura está sempre presente, como quando a certa altura, no conto “O Cervo de Dreux” que abre o livro, se introduz Lampedusa: “Lampedusa entendia bem como as coisas dão voltas antes de partir: deixam o seu rasto de caracol, a sua esteira de prata transparente e húmida, e depois afundam-se na memória”.
Fala-se da infância e da velhice, de como para tocar o coração da realidade é preciso deforma-la, discorre-se num quase silêncio sobre o fim da amizade, refere-se Jesus como o primeiro surfista, assiste-se a uma aula sobre o mar na pintura, visitam-se museus onde nem em sonhos conseguiríamos entrar. Tudo num tom confessional, entre a auto-ficção em estado puro e a pura invenção, fazendo de “O Nervo Ótico” um dos livros maiores de 2018. Artisticamente falando, María Gainza pintou um quadro do caraças.
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