No pressuposto de que ser viajante é diferente de viajar; que ser um descobridor respeitoso de outros locais, outros povos, outras maneiras de ser e de viver, outros sentidos dados à vida e ao mundo é diferente de simplesmente deslocar-se de um ponto para o outro; então, “O Mundo, Modo de Usar”, de Nicolas Bouvier (Tinta da China, 2020), é um livro de interesse para viajantes ou para quem almeja sê-lo, ainda que sob o verbo de outros.
A alma e a vida de um viajante como o suíço Nicolas Bouvier (1929-1998) começou a formar-se, ainda imberbe, através da admiração silenciosa de mapas, da leitura de livros que projectaram sonhos e da escuta atenta de narrativas de quem já havia colocado o pé fora da sua zona de conforto.
Em 1953, aos 24 anos, pretendendo mais do que aquilo que a academia lhe proporcionava, Bouvier abandona a universidade e parte ao encontro do amigo e pintor Thierry Vernet, a quem se junta em Belgrado. Juntos dirigem-se para leste, à descoberta e à procura da confirmação do que criaram em sonhos. Bouvier pretende alcançar o Japão. Antes de lá chegar, num trajecto de quase quatro anos, como antecipa José Mário Silva no seu generoso prefácio, “houve a viagem dentro da viagem. (…) À descoberta, de olhos muito abertos, sem outra bússola que não seja a curiosidade extrema e o impulso de atravessar as grandes extensões sonhadas”.
O trajecto inclui a passagem pela Jugoslávia, a Grécia, a Turquia, o Irão e o Afeganistão, a um ritmo variado e num percurso muitas vezes improvisado, porque mais importante do que a passagem foi a integração das realidades que descobriram, só delas prescindindo quando, de alguma forma, sentiram que já faziam parte do seu ADN. Fica a convicção de que não teria valido a pena simplesmente passar e registar: foi preciso sentir e disponibilizar o reservatório de memória e emoção para acolher detalhes e fazer seguir a caminhada, com uma bagagem cada vez mais completa. Mais uma vez parafraseando José Mário Silva, “eles não se limitaram a passar pelos sítios assinalados no mapa; eles existem plenamente em cada um deles, mesmo se apenas por uns dias ou umas horas, e só depois, seguem caminho”.
Bouvier revela, no seu relato, uma capacidade extraordinária de representar, tanto aspectos observáveis como, também, de fazer intuir emoções em si próprio ou com quem interagiu. Há fluidez e intensidade ou, se quisermos, minúcia, na forma como representa o que observa, o que faz, o que sente, o que descobre, o que confirma, o que o surpreende, o que o assusta e o que o conforta. Vai de retratos gigantescos, impactantes mesmo para quem não está lá, às coisas mínimas, como se abrisse uma série de pequenas gavetas num móvel, cada uma repleta de novidade e, ainda assim, com grande naturalidade.
Por dificuldade em encontrar editor, em 1963 Bouvier publicou às suas custas este livro que, com o passar do tempo, se tornou num clássico. Nas palavras do próprio Bouvier, “uma viagem dispensa pretextos. Não demora muito a provar que se basta a si mesma. Julgamos que vamos fazer uma viagem, mas depressa compreendemos que é a viagem que nos faz, ou nos desfaz”. Embarquemos sem receio nesta leitura e numa descoberta de vida.
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