“A curiosidade era uma característica muito malvista na minha família. Lá em casa, as perguntas nunca viam a luz do dia. Viviam dentro de nós como pecados indigestos. Os meus primos e eu habituámo-nos a crescer rodeados de segredos.”
O título do mais recente livro de Francisco Camacho, “O Monte do Silêncio” (Dom Quixote, 2023), remete-nos não só para um espaço, mas também para um estilo de vida. Enquanto propriedade, este monte português foi uma vasta exploração agropecuária, até o clã detentor das terras passar a ser liderado por um magnata da construção, que optou por transformá-la num “santuário natural à porta fechada”. Por outro lado, é o pólo agregador de uma família dominada pela cultura do silêncio – uma representação satírica de uma classe endinheirada, devotada às aparências, inculta e de hábitos desregrados, cujo triunfo deve muito ao tráfico de influências.
O facto de a cultura do silêncio não ser a melhor estimuladora da memória, sobretudo quando imposta desde tenra idade, agrava a situação de Diogo, protagonista e narrador, que acredita ter sido responsável pela morte de duas pessoas ainda antes de atingir a idade adulta. Julgando-se além de qualquer redenção, reage aos traumas com uma atitude desencantada face à vida, bloqueando recordações e consumindo doses copiosas de drogas legais e ilegais, enquanto vai embolsando os cheques da editora do popularíssimo livro de auto-ajuda do falecido pai. Porém, as suas rotinas são perturbadas pelo homicídio de Norma, a afilhada do seu tio Óscar, o poderoso patriarca da família. Confiante e carismática, ela distinguia-se de Diogo e dos primos, “domesticados desde cedo para louvar o tio Óscar”, mantendo intacta a energia e a alegria que lhes foram sugadas – qualidades nem sempre bem vistas, não faltando quem insistisse em tratá-la como subalterna.
O crime é rapidamente atribuído a dois de entre os muitos imigrantes que trabalham nas estufas locais, mas a verdade revela-se demasiado complexa para poder ser abafada com bodes expiatórios. Para Diogo, a morte da amiga – por quem chegou a crer estar apaixonado – representa um ponto de viragem que o impele a agir, pois um antigo colega de escola convertido em polícia convence-o da importância da sua colaboração para a descoberta do assassino. Paralelamente, o seu psiquiatra – que Diogo despreza, mas cuja prodigalidade na prescrição de medicamentos aprecia – exige que o paciente se envolva minimamente na terapia através da redação de um diário, exercício esse que começa por parecer ao protagonista “apenas mais um projecto condenado ao fracasso”, mas no qual acaba por encontrar “libertação e verdade”.
A dependência de um narrador cuja memória se sabe desde cedo ser falível torna a faceta policial do livro especialmente bem construída, na medida em que os leitores o acompanham no desenredar dos nós da trama. Ao iluminar recantos obscuros do passado de Diogo, a morte de Norma leva-o também a revisitar outras tragédias e a apurar as razões do comportamento de alguns dos seus familiares, gerando uma atmosfera de thriller psicológico com camadas de crítica social que preserva habilmente mistérios até ao fim.
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