Numa livraria lisboeta, uma imigrante brasileira, funcionária da secção de poesia, recomenda uma colectânea de Carlos Drummond de Andrade a uma cliente, a qual responde que prefere “algo escrito em português de verdade”. O sucedido é posteriormente comentado por dois colegas, ao alcance dos ouvidos de um terceiro, todos eles imigrantes brasileiros, ficando o último intrigado com a referência a uma figura conhecida como “o Mau Selvagem”: “a sorte dela [da cliente] é que o Mau não está mais aqui”.
“O Mau Selvagem” (Urutau, 2024), título do sexto romance de Álvaro Filho, remete-nos para o mito do bom selvagem, popularizado pelo filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, para nos confrontar com o seu oposto: alguém que, no território do antigo colonizador, se rebela contra um contrato social que o remete para um escalão abaixo dos cidadãos nacionais. Num meio onde os imigrantes brasileiros vivem com a frustração de não conseguirem dar uso aos seus diplomas académicos, de apenas encontrarem empregos mal remunerados e de deverem mostrar-se submissos perante clientes que esperam deles uma atitude servil, ele torna-se “uma lenda moderna”, cujo nome é evocado “entre sussurros, como numa prece, e também para que o gerente, uma das vítimas das maldades do Mau, não ouvisse”.
Cada vez mais fascinado, o ouvinte de tais histórias – narrador e protagonista do livro – inicia uma investigação sobre o paradeiro do ex-funcionário misteriosamente desaparecido, utilizando os métodos dos detectives dos romances policiais negros que vende no dia-a-dia e que lê entre atendimentos a clientes. Sonha que a experiência lhe servirá de inspiração para se tornar, ele próprio, escritor de policiais, mas o rasto do Mau leva-o por um caminho para além da investigação com fins literários, mergulhando-o numa intriga romanesca com um desfecho inesperado, onde nem sequer falta uma loira fatal.
Aquilo que vamos descobrindo sobre o Mau, ao mesmo tempo que o narrador, também é surpreendente, mas nem sempre pelas melhores razões. O tom geral da narrativa é tão divertido e espirituoso que começamos por imaginar o Mau como alguém cuja arma é o gume de uma língua afiada. Desilude descobrirmos que afinal, entre o humor, “a Excalibur redentora das humilhações sofridas pelos brasileiros da livraria, a nêmesis dos portugueses esnobes”, é um cano de metal, instrumento de violência física exercida como vingança.
Apesar disso, o autor multipremiado, radicado em Lisboa, é excelente na caracterização das diversas vagas de imigração brasileira para Portugal, bem como na exposição da sobranceria cultural que frequentemente enfrentam, entre nós, muitos daqueles que classificamos como estrangeiros.
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