Comparar literatura a cinema tende a ser detestável. Porém, o entrosamento das linguagens escalaram naquilo que é uma inspiração e entreajuda criativa que, a ser ignorada ou delimitada por dogmas, seria apenas estupidez despegada.
A comparação só tende a ser detestável, pois, no colectivo humano ocidentalizado, a literatura é vítima de pesca de arrasto, para avançar na produção de filmes que garantem, no mínimo, o público que leu os autores e tem interesse em ver, regra geral, a própria imaginação trucidada. Sim, temos consciência que não é a realidade portuguesa – a indústria não existe, mesmo que brinquemos como se existisse.
Também é regra, aliás, cada vez menos inviolável, num mercado gigantesco, de dimensão global como o anglófono, os livros, até mesmo a alta cultura em versão light que caracteriza a produção literária americana desde que Carver morreu e Pynchon continua sem pneu sobressalente, serem pensados para o passo seguinte: a adaptação cinematográfica. Pode calhar-vos um Fincher, que vos melhora o livro, mesmo se tratando de uma obra banalíssima, ou pode calhar-vos um Fincher, que vos destrói o magnum opus (existem dois Finchers).
Felizmente, quando aquilo que se recebe do cinema é como a palavra do Poeta, a coisa dá certo. A longa introdução serve para argumentar apenas o seguinte: Possidónio Cachapa é a versão portuguesa do bastardo proveta de Guillermo Arriaga e Terrence Mallick. Podem chutar as comparações literárias que quiserem, dos entroncamentos de Faulkner à dureza vernacular das vozes Lobo Antunes fase Elefante, mas a base de Cachapa é gritante desde a abertura: a densidade é visual, e sentimos os cortes à bela moda do corte de fita analógica. A edição, neste primeiro sentido, é de uma beleza sequencial que só podia ser justificada pelo apolíneo lúcido, logo calculado, de guionista (uma das sub-profissões de Possidónio, escritor.
É frequente os continentais perguntarem aos naturais de uma ilha sobre o conceito de isolação. Faz-lhes imensa confusão a ideia de se estar cercado por água, uma síndrome de Krakatoa, de onde uma erupção letal deixará qualquer habitante sem hipótese de sobrevivência. Ora, um autóctone não pensa muito sobre isto, isto é, até viver um dos temas que a literatura e arte, termo que visa aqui ser muito abrangente, explora desde – e isto é especulação – a Mesopotâmia: o choque da trasladação dos corpos da Metrópole para a colónia panóptica.
Cachapa tanto joga com estes contrastes de forma doce, como o Poeta mau, ou de forma feroz e visceral, como o Poeta bom. A coisa é um pouco como as divisões dos activos dos bancos: de um lado, a pureza do capital, do outro, lixo tóxico amoral. Ou seja, um romance hormonal.
Nesta reedição de “O Mar por Cima” (Companhia das Letras, 2017), tal como está presente a revisão para sempre insatisfeita ao jeito de Herberto, Senhor e Mestre das ilhas, temos também o mesmo Possidónio que escreve espumando pela boca, feroz e libidinoso, havendo embelezamento de Poeta nos compassos inversos, antes da tempestade vem a bonança, de rápido encaixe rítmico na memória. E depois há a capa e a edição toda bonita, mais onírica que o usual: é lindíssima e fica um orgulho em qualquer estante, por isso, não há como falhar aqui.
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