• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
O Luto é a Coisa com Penas, Elsinore, Deus Me Livro, Max Porter
Mil Folhas 0

“O Luto é a Coisa com Penas” | Max Porter

Por Paulo Ribeiro da Silva · Em 28/10/2016

“E foi isto que ele disse:/ Ficarei até que não precises mais de mim.(…)/ Eu recostei-me para trás, resignado, e desejei que a minha mulher/ não tivesse morrido. Desejei não estar apavorado, caído num gigantesco/ abraço-pássaro no meio do corredor. Desejei não ter/ ficado obcecado com esta coisa justamente no momento / da maior tragédia da minha vida. (…)/ Olá, Corvo, disse eu. Que bom conhecer-te finalmente.”
*
E ele foi-se./ Pela primeira vez em muitos dias, dormi.”

Tudo começa assim.
O eterno retorno a que estamos votados condena-nos à re-petição, ao re-gresso, à re-adaptação.
Uma presença incómoda, porém inevitável, exige atenção e resposta.
A Dor, que parecia afastada da mente e da alma, regressa e apresenta-se, maior, asas negras abertas, dominadoras.
O patriarca de uma família lançada no luto e na luta para dele sair incólume, reconforta-se no seu abraço, a sua chegada mera evidência infalível que apenas tardava.

“Entre o eu natural do Corvo e o seu eu civilizado/ vai-se fazendo um intercâmbio fascinante e constante (…) Parece-me ser o intercâmbio exacto/ entre o luto e vida, então como/ agora. Teria muito a aprender com ele.”

Toma a forma de um corvo. Alucinação talvez. Placebo racional, lógico para um especialista na obra de Ted Hughes, famoso assombrado pela culpa devastadora da perda precoce da sua Sylvia. Também ele pai de um Corvo ficcional, onde cravou bem fundo toda a negritude e solidão que o possuiu, mascarada de poesia sublime e brutal, meta-ficção, recriação.
Também os seus filhos, ainda infantes, pressentem a mudança súbita.

“(…)sabíamos/ que alguma coisa se passava. Sabíamos que não nos davam/ respostas directas quando perguntávamos «onde está a Mamã?”

O melhor livro deste ano foi publicado originalmente em 2015 e tem um corvo por protagonista.
Escrever isto, ou dizê-lo, pode parecer lunático para quem não encontra o mínimo atractivo na face mais fantástica da literatura, mas basta uma leitura das primeiros páginas de “O Luto é a Coisa com Penas” (Elsinore, 2016) para perceber que nada poderia ser mais falso.

Para quem teve a felicidade de devorar a versão original, é refrescante constatar a presença activa de tradutores como Daniel Jonas, capaz de fazer o quase impossível e manter a integridade de uma obra singular, no seu uso quase plástico da linguagem e de toda a paleta de recursos disponibilizados pela bela língua de Shakespeare.

A temática é penosa, fantasma que nos assombra até ao fim e os efeitos perenes da realização da sua inevitabilidade.

Como corvos indomados e inteligentes, somos convidados a acompanhar o escritor e os seus narradores, enquanto se distraem e desvendam, estilhaçando a tradição e a crítica literária britânica, mas também os clássicos intocáveis e a abordagem de temáticas soturnas, como a perda, a performatividade e os rituais repetidos por mera conveniência e habituação nestes momentos transversais e omnipresentes.

“Sempre que me sento e passo a vista pelas minhas notas, o Corvo/ aparece no meu escritório (…) A maioria das vezes fica feliz por ficar enrodilhado/ em sossego na poltrona a ler, silvando. (…) Não tem tempo para romances. Só pega/ em livros de História para chamar estúpidos a grandes homens/ ou amaldiçoar a Igreja.”

Na sua obra de estreia, Max Porter materializa esta saudável irresponsabilidade e irreverência na figura omnipresente do Corvo. Recusa a rigidez e solenidade obscura com que esta figura mítica foi outrora carregada, para lhe conferir traços antropomórficos de personalidade, sensibilidade e empatia. Aproveitando a inteligência que lhe corre no sangue, extrapola-a ao reino do quase psicanalítico.

“o lugar estava pejado de luto profundo/ cada superfície Mãe morta, lápis de cor, trator, casaco,/ galocha, cobertos com uma película de pesar.”

Ao mesmo tempo, aproveita o longo caminho já percorrido e recupera o peso simbólico desta personagem, com claro destaque para a sua dimensão jocosa, de bobo destruidor de narrativas e verdades, sempre pronto a berrar, a plenos pulmões, as verdades mais inconvenientes, doa a quem doer.

“Noutras versões sou um médico ou um fantasma. (…) Conseguimos fazer coisas/ que outras personagens não conseguem, como comer a mágoa/ desdar à luz segredos e travar batalhas dramáticas com a linguagem/ e com Deus. Eu era amigo, desculpa, deus ex machina, piada, sintoma,/ ficção, espectro, muleta, brinquedo, fantasma, mordaça, analista/ e ama-seca.”

Talvez inadvertidamente, baseia a estrutura da obra numa sucessão de fractais triangulares que se vão expandindo, o que apenas confere profundidade ao texto, sem interferir minimamente na sua acessibilidade.

Edward James Hughes, Ted para os amigos e a eternidade, é profusamente evocado, directa e indirectamente e, com ele, a “sua” Sylvia Plath e a escritora/poeta que, depois da trágica morte da sua esposa, o britânico redescobriu e promoveu no seu país natal: Emily Dickinson, (citada no título do livro e no poema que o introduz, ambos “profanados” pelo Corvo).

É deste triângulo, explorado à exaustão pela crítica literária (incluindo o próprio Porter e, com certeza, o Pai – novo triângulo, com Hughes no vértice superior), que se ergue esta história de reconstrução e reabilitação individual e familiar.

O Corvo anti-mitológico, torna-se realidade diária desta família que perde o Norte, e assume a tarefa de a tentar salvar ou, pelo menos, consolar estes três seres despedaçados. Pai e Meninos, gémeos, com personalidades complementares, formando juntos o triângulo equilátero da Unidade.

“Tente considerar os três, num só (…) À esquerda, temos o pai. (…) A meio, eu próprio. (…) À direita, temos/ os meninos. Duas formas, embora um só vulto.”

Também o texto em si se divide em três diferentes vozes: Meninos, Corvo e Pai – com todo o simbolismo associado à trindade, que aqui nos escusamos a relembrar. O Corvo é o intruso, mas isso pouco o apoquenta, porque tem uma missão a cumprir.

“Uma oportunidade meiga para cuidar.”
“Tenho relutância em discutir o absurdo convosco,/ que nos perseguiram desde o começo dos tempos. De que serve/ um corvo diante de uma matilha de humanos pesarosos? (…) Mas preocupo-me, profundamente. Considero os humanos aborrecidos/ excepto no pesar. (…) As crianças/ sem mãe são puro corvo.”

A estrutura estende-se à estratégica divisão do livro. A Parte Um, “Uma Pincelada de Noite”, relata a chegada intempestiva do Corvo; a Parte Três “Licença Para Partir”, a(s) despedida(s) e a Parte Dois, “A Defesa do Ninho”, detalha as tentativas de avançar, centradas na casa e na unidade familiar, tornadas forte do general Corvo, rei e senhor, Mefistófoles e anjo da guarda, lançando um impositivo desassossego.

A memória e o tempo são propositadamente baralhados.

“O Pai contava-nos histórias e as histórias mudavam/ quando o Pai mudava.”
“Era uma vez dois meninos/ que, de propósito, trocavam tudo a respeito/ do seu pai. Esquecer coisas relacionadas com a sua mãe/ fazia com que se sentissem melhor.”

O Corvo dá o mote e as crianças mordem a isca. Qualquer um dos narradores nos engana, como também se engana a si mesmo. Nada mais natural do que iludir a realidade, para também a dor lhe seguir o curso, dissimular as suas origens. Deste jogo de fugas, deriva a fragmentação e multiplicidade de registos (fábula, lenda, poesia, farsa, sátira…) sem que, em momento algum, se perca a fluidez e o apelo irresistível a qualquer leitor, independentemente da amplitude dos seus conhecimentos literários.

“Um irmão estava placidamente sentado dentro/ dos pedaços do irmão e esforçava-se muito/ mas sentia-se revoltado. Sou eu. (…) Eu sou ambos os irmãos.”

O Luto é a Coisa com Penas, Elsinore, Deus Me Livro, Max PorterComo reflexo intrínseco da existência e o passado desta família, também o livro se desintegra para, no final, se reencontrar na poesia dos gestos partilhados, no Amor puro que sobra quando tudo se desmorona.

À semelhança de todos os grandes clássicos, o centro de gravidade deste maravilhoso opúsculo é a emoção. De uma história eternamente repetida, que poderia resvalar no sentimentalismo bacoco, saímos revitalizados e optimistas, graças a uma criatividade fulgurante, que casa na perfeição a audácia formal com a facilidade com que nos revemos em cada nuance de todo o elenco de personagens.

Neste livro raro e multifacetado, encontramos pequenos acenos a um amplo espectro de leitores, desde o mais cínico crítico literário, que encontra referências que só ele decifrará satisfeito, ao leitor mais curioso e casual.

“Seguir em frente, como conceito, é para pessoas estúpidas, porque/ qualquer pessoa razoável sabe que o luto é um projecto a longo prazo./ Recuso-me a ser precipitado. Que nenhum homem atrase/ ou acelere ou componha a dor que nos caiba em sorte.”

O seu trunfo e triunfo é o claro menosprezo da banalização dos sentimentos que nos unem, em favor do saudável “desrespeito” pelo que de mais duro a vida nos reserva: o recomeço depois da hecatombe do nada, que se impõe perante as ausências definitivas e irreparáveis.
Indispensável é um eufemismo.

“Sinto tantas saudades dela que me apetecia construir um monumento/ de trinta metros de altura à sua memória com as minhas mãos nuas.(…) Quão palpável é esta minha saudade. (…) A cidade inteira é a saudade que lhe tenho./ Arre, disse o Corvo, pareces um daqueles ímanes que se colam no frigorífico.”

ElsinoreMax PorterO Luto é a Coisa com Penas

Paulo Ribeiro da Silva

Pode Gostar de

  • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica, Mil Folhas

    “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss, Mil Folhas

    Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

  • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão, Mil Folhas

    “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica,

    “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

    30/05/2025
  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss,

    Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

    29/05/2025
  • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão,

    “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

    29/05/2025
  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Religião Sem Deus, Gradiva, Ronald Dworkin,

    Curtas da Estante: “Religião Sem Deus” | Ronald Dworkin

    29/05/2025
  • Curtas da Estante, Devir, Deus Me Livro, Hitler, Shigeru Mizuki,

    Curtas da Estante: “Hitler” | Shigeru Mizuki

    28/05/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto