Dinis Machado fez-se uma referência maior da literatura portuguesa com “O Que Diz Molero”, romance publicado em 1977. O livro espelha o seu estilo enquanto escritor: uma prosa de identidade bem portuguesa, ancorada em linguagem coloquial e bem-humorada e com formas roubadas ao vernáculo e à oralidade – e, também, uma forte influência cinéfila, devedora das fitas americanas do século XX e da estética do film noir.
“O Lugar das Fitas” (Quetzal, 2016) faz-se dessa mesma matéria. Reúne crónicas escritas entre 1959 e 2001 para diversos jornais e revistas, com base na paixão antiga do escritor pela sétima arte. É uma colecção de retratos, quase auto-biográficos, sobre a relação de uma geração (a sua) com o “foguetão imparável do cinema”. Nestas páginas encontramos, entre outros veneráveis fantasmas, Buck Jones, Flash Gordon, as fitas dos antigos cinemas de bairro, Truffaut, Milos Forman e Humphrey Bogart, o amor a Chaplin e o horror a Hitchcock.
Há textos mais empolgantes, outros mais esquivos e herméticos mas, em todos eles, transparece o gosto de Dinis Machado pelas palavras e o virtuosismo da sua escrita. Como, por exemplo, quando escreve sobre a série “Miss Marple”: “Miss Marple inspecciona o efeito aparente do real, aquilo que o real dissimula, ornamentado de efeito aparente. As setas do caminho apontam sempre para o caminho errado, mas ela não tem ouvidos para os apelos do despiste. Só tem antenas de curiosidade.”
Percorre o livro um desprendimento bem-disposto, como quando se formula a pergunta “O escritor é um solitário?” – resposta pronta: ”No sentido de fazer o possível para que não o chateiem, é.” Salpicadas pelas páginas há frases notáveis, como aquela em que o autor descreve “a minha avó deitada na cama, quase morta, a ditar-me cartas para “a Terra” (a Beira), e eu com o ouvido na boca dela, a recolher murmúrios.”
Todas estas crónicas representam um exercício de memória e de identidade, erigido no jogo de espelhos que é o cinema. “Talvez não haja arte mais emaranhada do que a de escrever, maneira de começar a andar no escuro tacteando iluminações”, por vezes encontradas no brilho cintilante e hipnótico do grande ecrã.
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