Quando, em 2020, escreveu “O Livro das Despedidas” (Gradiva, 2024), o bósnio Velibor Čolić continuava a sentir-se e a definir-se como um refugiado político em França, mesmo lá vivendo há vinte e seis anos. Este pequeno livro, agora publicado em Portugal pela Gradiva, pode ser uma grande ferramenta sociológica, dandodo-nos a perspectiva de quem chega a um país de acolhimento, é recebido com a melhor das intenções, tem uma atitude de gratidão para quem lhe abre as portas e oferecendo ferramentas especiais de integração, mas continua a sentir-se um outsider. Tem ainda a facilidade de ser um louro num país europeu, um poliglota numa terra de turistas, um escritor num meio que valoriza a palavra escrita. Ainda assim, continua a sentir “a língua como uma fronteira e o sotaque como um exílio”.
“O Livro das Despedidas” é escrito na primeira pessoa, num registo eminentemente autobiográfico, por Velibor Čolić, que em 1964 nasceu numa pequena cidade da Bósnia, estudou literatura jugoslava em Sarajevo e Zagreb, trabalhou em rádios regionais como jornalista especializado em música e viu a sua casa e todos os seus escritos serem queimados durante a Guerra dos Balcãs. Membro do exército bósnio, desertou em Maio de 1992 e foi feito prisioneiro. Tendo conseguido fugir refugiou-se em França, onde reside actualmente. Em 1994, a editora francesa Le Serpent à Plumes publicou o seu primeiro livro, “Les Bosniaques”, ao qual se seguiriam vários outros – “Guerre et pluie” (2024) é o seu mais recente livro.
Com um relato claro, incisivo e viciante sobre identidade e pertença, “O Livro das Despedidas” permite-nos acompanhar Velibor Čolić na sua pele de homem, de refugiado e de escritor. Como se sente, como é tratado e como se vê, na sua individualidade e em perspectiva com o contexto em que se insere. A narrativa é existencialista e desprovida de filtros, como se estivesse numa entrevista de vida, facilmente se imaginando a icónica pergunta “o que dizem os seus olhos?” ou visualizando as câmaras permanentemente focadas no suor do sujeito, que se diz enlouquecido pela vontade de ser autêntico, na vida e na escrita desprovido de acessórios. Fala de si como um ser em reconstrução, medindo o peso dos ganhos e das perdas do exílio, (re)inventando o passado e o futuro, trocando a cidadania por um estatuto. “Um refugiado não fala, vive a língua”.
Mesmo depois de ter publicado três romances, Velibor Čolić procurava dosear a sua visibilidade, sentindo que havia “coisas desculpáveis num imigrante, como a pobreza, o analfabetismo, a poligamia, as cáries, a corpulência, pelos do nariz a sair das narinas, e por aí fora”, mas a ambição não é um estado normal para um imigrante. Viveu então as agruras materiais, as crises existenciais, as relações tempestivas, a omnipresença da bebida, testando a sua capacidade de auto-destruição. As suas histórias integram por isso o realismo e o drama que fez parte da vida sua vida, permitindo ao leitor experimentar todo o tipo de sensações: o seu existencialismo na forma como vive e como escreve; a forma como procura reconstruir o mosaico da sua própria vida; e, acima de tudo, sobreviver. Fá-lo situando-se num ponto de intersecção entre o queixume do pessimista, a passividade do optimista e a luta ou o esforço do realista. A superação parece surgir quando decide escrever um romance em francês, não se deixando intimidar pelo facto de ter apre(e)ndido a língua aos trinta anos. Faz um balanço da sua vida e assume-se como “um marinheiro sem mar, um sonhador que sofre de insónias”. Assume igualmente a ambição de ser um escritor francês, abandonando a invisibilidade que a prominência da barriga e a tez rubicunda lhe permitiam. Curiosamente, a partir do momento em que se tornou um estrangeiro visível, ainda que procurando assumir-se como um homem flexível, um intelectual comprometido e um europeu lúcido, percebeu que estava longe do céu: dissesse o que dissesse, fizesse o que fizesse, passava a ser primeiro que tudo um estrangeiro visível.
Contando a sua história, Velibor Čolić parece ter procurado libertar-se e humanizar o imigrante e o seu mundo, associando-se àqueles que como ele se desafiam perante o olhar inquisidor da sociedade, ainda que camuflado pelo humanismo moderno de um mundo sem fronteiras.
Sem Comentários