Há uns anos atrás, houve alguém que teve uma ideia genial para vender cadernos de folhas lisas. Deu-lhe uma capa toda pipi, inventou um conceito, definiu um público-alvo que ia de escritores e secretárias e chamou-lhe, muito pomposamente, O Livro em Branco. Han Kang, escritora nascida na Coreia do Sul, lançou também a sua versão de “O Livro Branco” (Dom Quixote, 2019) mas, ao invés de um mergulho na página branca, convida os leitores a embarcar numa viagem transformadora sobre a cor, uma meditação diarística e quase sempre atravessada pela dor e a perda que, começando com uma simples lista de coisas brancas – a neve, o sal, o arroz, o cabelo dos velhos… -, avança depois para reflexões mais profundas, sejam sobre o luto, a beleza ou a fragilidade e a estranheza da existência humana.
Há, aqui, uma busca pela regeneração, através do “labor de espreitar para o coração das palavras”, num livro que nasceu de enxaquecas cíclicas ocorridas num lugar novo e da decisão de “irreflectidamente avançar para um tempo que ainda não vi, para este livro que ainda não está escrito”.
A lista inicial de palavras ligadas ao branco dá origem a estudos filosóficos, com o espírito de síntese e a imagética dos haikus, sejam sobre uma porta, o quarto onde os dias se arrastam ou as faixas brancas que embrulham “a mais vulnerável de todas as crias”. Sempre com a envolvência do branco, que descobrimos na neve, na palidez dos rostos ou nos comprimidos tomados para anestesiar a dor.
Dor que está presente através da morte da irmã, “branca como um bolo de arroz”, que nunca chegou a conhecer mas que a faz interrogar, caso a tragédia não tivesse acontecido, se ela própria teria nascido. Irmã que é o elo condutor da segunda – de três partes – parte do livro, onde da narração do eu se passa para a invenção do ela. Antes disso há fantasmas, cicatrizes e ruínas, como neste pequeno poema:
Só coisas brancas te darei
E não voltarei a perguntar
Se te deveria ter dado esta vida
Uma ideia que se estende a Toda a Brancura, a última parte do livro, que encerra fechando a cortina branca e aprisionando, através de uma invisível mas tocante brisa, a ténue memória, completando assim esta expiação familiar: “Dentro desse branco, de todas essas coisas brancas, sorverei o último sopro de ar que exalaste”. Autobiográfico e experimental, “O Livro Branco “ é mais uma obra-prima saída da imaginação de Han Kang, autora de “A Vegetariana” – romance vencedor do Man Booker International Prize – e “Atos Humanos”.
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