“O Ladrão de Cadernos” (Dom Quixote, 2025) é, simultaneamente, um abraço e um murro no estômago. Um romance que nos oferece uma viagem dolorosamente bonita até à Itália de Mussolini, apresentando-nos três jovens distintos, cujas vidas se cruzam na pequena aldeia de Tora e Piccilli, no ano de 1942.
Tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial, começa por nos apresentar Davide e Teresa, dois aldeões separados pelos extremos da política, o dinheiro dos seus pais (ou a falta dele), o conhecimento e o tamanho dos seus sonhos. Teresa, uma jovem letrada, oferece a Davide, o filho do guardador de porcos gozado pelo seu coxear, uma nova perspectiva sobre o mundo – ensinando-o a ler, a escrever e a sonhar, sem sair do recôndito lugar onde ambos se encontravam.
Certo dia, com uma chegada inesperada, muda-se o rumo daquela que parecia assemelhar-se a uma história de amor em tempos de privação e de guerra. A pacata aldeia italiana, onde escasseava o pão e o sentido de opinião, acolhe 36 judeus vindos de Nápoles – seres humanos odiados sem razão aparente, que faziam com que o pai de Davide e os seus conterrâneos questionassem o trágico destino que Deus lhes havia dado com aquela chegada.
A Davide e Teresa, aqueles novos inquilinos provocaram um misto de sentimentos, diferente dos restantes. Em especial o judeu Nicolas, cuja aparência invejava Davide e lhe despertava novas vontades, com as quais jamais tinha sonhado. O pobre cuidador de porcos imaginava-se no corpo do recém-chegado e vivia, ainda que figurativamente, uma vida que não era a sua: livre das amarras do seu pai, sem porcos, sem fascismo, longe do único sítio que tinha conhecido.

Comovente até ao tutano, esta bela obra demonstra-nos o poder da força de vontade, que nos leva mais além mesmo quando tudo parece conspirar para o impedir. Fala do impacto da qualidade do berço onde nascemos, da forma como nos molda mas, acima de tudo, apela à mudança e ao sarar de feridas antigas. Davide parece destinado a seguir os passos de seu pai, mas a sua força de vontade fá-lo ser diferente e sair da zona de conforto. Aprende a escrever através de folhetos fascistas com dois judeus, com a escrita a dar-lhe esperança no futuro, em algo novo e melhor. O simbolismo dos cadernos, que nos é estranho ao início por não se relacionar com o guardador de porcos que não sabe escrever, é clarificado ao longo da trama, e representa um belo pormenor nesta impactante história.
O livro de Gianni Solla fala da possibilidade de nos salvarmos através dos outros, denotando ainda assim que a perfeição não passa de uma opinião alheia, sendo que todos somos igualmente frágeis quando confrontados com situações adversas. Humanamente belo e tocante, “O Ladrão de Cadernos” está escrito de forma poética, demonstrando que o nosso fado pode ser cantado em vários tons, por vozes distintas. O fim do livro deixa em aberto inúmeras possibilidades quanto ao futuro das personagens que sobreviveram às suas 288 páginas, até porque a vida é isso mesmo: o que quisermos que ela seja. Haverá sempre um amanhã para reescrevermos a nossa história.
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