Marta Peirano é jornalista e escritora, especialista em cultura livre, tecnologia, arte digital, criptografia, direitos e liberdades na rede. Foi fundadora da CryptoParty Berlin, uma iniciativa em prol da segurança e privacidade na Internet, e do colectivo Elástico, através do qual, em 2005, impulsionou o projeto COPYFIGHT. A descoberta de hackers, na década de noventa, levou-na a uma reflexão crítica sobre a tecnologia nos nossos modos de agir e pensar, plasmada no livro “O Inimigo Conhece o Sistema” (Kalandraka, 2020).
São sete os capítulos deste ensaio, que provoca em nós, leitores, imensas perguntas e, em alguns momentos, uma angústia enorme. Tudo começa com a adição, o modo como as grandes empresas, de variadíssimas áreas incluindo as tecnológicas, produzem os odores e sabores de todas as coisas que compramos. “Os engenheiros do aroma são magos que actuam sobre a mente com material invisível e o seu efeito pode ser devastador. Não trabalham sozinhos. As suas criações chegam-nos reforçadas por um envoltório, um branding, uma campanha de marketing”. Quando vamos às compras, optamos pelas cápsulas da Nespresso porque “integram um aroma que se volatiliza durante a preparação para sentirmos que estamos «a fazer» café. É o cheiro das cafetarias que torram o seu próprio grão”. São criadas as condições para a adição, de forma subtil e inconsciente somos manipulados através do consumo.
Marta Peirano alerta-nos sobre o regresso do mundo de George Orwell. Diariamente, aos nossos cérebros são retiradas horas de sono, energia, tranquilidade, somos orientados pelo digital. Em nome da modernidade, actualização e informação há um conjunto de servidores, satélites, antenas, routers e cabos de fibra óptica, controlados por um número cada vez mais pequeno de empresas que trabalham dia e noite para nos agradar, mas também para nos enganar e estimular a ser acríticos. Não nos podemos esquecer de que, por detrás da internet, há uma estrutura secreta constituída por algoritmos, que gerem e manipulam as nossas decisões. “Há algoritmos a intervir no mundo de milhões de maneiras diferentes, e a maior parte do tempo não sabemos que eles existem, nem quem os pôs ali, nem sequer onde estão. (…) Um biólogo chamado Michael Eisen descobriu a anomalia por acaso enquanto procurava um título e, levado pela curiosidade, observou as mudanças durante uns dias até encontrar o padrão. Uma vez por dia, um dos algarismos revia o preço para que o seu livro fosse exactamente 0,9983 dólares mais do que o do outro”. Incrédulo? Conhece alguém que não tenha recebido um alerta de que alguém está a assistir a um vídeo, ou uma notificação para relembrar uma nova publicação, uma fotografia, um comentário, um recurso ou uma mensagem? Infelizmente, cada vez mais temos conhecimentos de múltiplos centros de dados que armazenam e processam a informação das nossas pesquisas, aquisições e escolhas. Tudo está camuflado.
“O Inimigo Conhece o Sistema” é um livro que nos ajuda a compreender os segredos da Internet, a ferramenta mais democratizadora da história da humanidade, que se transformou numa rede de manipulação e vigilância e, em alguns casos, ao serviço de regimes autoritários. A rede não é livre nem democrática, nem tão pouco desinteressada. Uma leitura muito interessante.
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