Marcelo Silva, jornalista com faro apurado para a investigação, é uma criação literária de Miguel Szymanski, uma personagem que vive no papel e que não andará muito longe de um híbrido feito a meias entre o Pepe Carvalho de Montalbán e o Montalbano de Camilleri: um tipo algo contraditório, muito dado a criticar a situação política e social do seu país, de personalidade amarga e algo melancólica, um gourmet quase profissional que adora uma boa refeição sem hora marcada.
Após os acontecimentos ocorridos em “Ouro, Prata e Silva”, Marcelo esteve meio ano em Berlim, onde ninguém o conseguiu localizar – apesar de não ter faltado procura, entre vários serviços do estado e pessoas com intenções pouco claras. Decidido a deixar de se sentir um criminoso em fuga, regressa a Portugal ainda com o cadastro limpo e a reputação de jornalista em alta, onde pretende fazer as pazes com Margarida, com quem tem uma história de traição sem estar bem certo de quem terá sido o traidor e o traído. Mal sabe que, em pouco tempo, estará no centro de um furacão soprado desde o Oriente.
Um iate de um bilionário chinês ancorado no rio Tejo, algures entre a Trafaria e Belém, serve de pano de fundo a um acordo histórico que Portugal está prestes a assinar com a China, e que ameaça todas as frentes: os bairros clandestinos construídos na margem sul, o meio ambiente, a ideia de liberdade, os políticos, jornalistas ou escritores que ousem dizer que não. Pressões políticas, chantagens, assassinatos, tudo vale para cortar a direito e fechar o negócio.
Por falar em política, Marcelo Silva dá-nos uma visão panorâmica do jogo do poder e do sistema que, por cá, se vai renovando e perpetuando sem rei nem roque: “Em Portugal, varrera-se discretamente para debaixo do tapete os casos de corrupção e pedofilia à volta do banqueiro raptado e assassinado. Sacrificara-se meia dúzia de figuras, o primeiro-ministro demitira-se e aceitara um cargo fora do país para um fundo angolano, recorrera-se ao financiamento externo para tapar um gigantesco buraco na banca. Entretanto, houvera novas eleições, ganhas por um velho partido liderado por uma nova equipa. O presidente da República nomeara um novo chefe de Governo, uma mulher. A habitual festa com foguetes, seguida de uma cortina de fumo e dança de cadeiras nos bastidores para manter o sistema a funcionar como antes. A pandemia que parara o mundo viera a calhar para todos os escândalos caírem rapidamente no esquecimento”. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.
Miguel Szymanski serve, em “O Grande Pagode” (Suma de Letras, 2020), mais um policial noir com pinta de investigação jornalística, onde com muito humor, mordacidade e espírito gastronómico tira um retrato a um país que, entre trabalho precário, cursos da treta e falcatruas mil, está a ser vendido pedaço a pedaço. Marcelo Silva veio para ficar.
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