Foram vários os momentos e contextos nos quais Mia Couto afirmou a sua intenção de ser um tradutor de outras vidas, dos que estão longe e sem voz, num gesto de reconhecimento da pluralidade que compõe a sua identidade. Ao fazê-lo, procurou balancear o concreto e o místico, o palpável e o sonhado, quase sempre servindo-se do povo moçambicano, da sua dura vida quotidiana, da pobreza e da guerra e da forma como contorna o sofrimento. A forma como o faz, com uma narrativa poética e ao mesmo tempo precisa e sóbria, tem contribuído para que outros povos, outras gentes geograficamente distantes, se revejam e projectem nos seus relatos.
Em “O Caçador de Elefantes Invisíveis” (Caminho, 2021), o seu mais recente livro, Mia Couto retoma um género literário que já lhe é conhecido com mestria. Histórias de gente comum, personagens anónimas que o autor traz para a ribalta dando-lhes nome e luz, salientando a relevância da forma como pensam e sobrevivem. Gente de vontade, que resiste à brutalidade e reinventa a dignidade, sendo impressionante a capacidade que Mia Couto tem de transformar episódios de dor e de sofrimento em relatos inspiradores, dominados pela resistência e a superação na adversidade. São mais de vinte contos, compilados e agora reescritos pelo autor, depois de terem sido publicados, nos últimos dois anos, na revista Visão, muitos deles reveladores do efeito disruptivo da pandemia no povo moçambicano – um profissional de saúde, mascarado e a impor distância como se tivesse armado, acaba por ser confundido com um ladrão; um caçador de elefantes invisíveis que confunde a brigada dos serviços de saúde com fiscais da fauna; gente que se sente prisioneira sem cárcere, refém da culpa e do medo.
Os temas são vários, como diversificada e vincada tem sido a mensagem de Mia Couto no retrato que faz da mulher na sociedade moçambicana, das várias formas de violência exercida sobre a mesma, dos traumas da guerra e do sonho, esse infindável reservatório de vida.
“Quem vive na sombra, inventa luzes.”
Mia Couto é um comunicador exímio, mestre como poucos na conjugação entre o relato objectivo e a passagem de aspectos oníricos. Assumir-se como mensageiro de outras gentes, ainda que as invoque como as suas, fá-lo mais intenso, mais fiel e mais reconhecido. Hoje, os seus textos e contos, excertos de livros e do seu pensamento livre e tranquilo, circulam como mote para a abordagem de temas fracturantes da sociedade. O investimento na educação das gerações mais novas, o respeito pelo direito das mulheres, a preservação da memória e a valorização do místico, são fragmentos da imensidão de áreas que aborda e explora como poucos, ora de forma romanceada ora de modo incisivo, em comunicações ou discursos, deixando bem claro que a poesia e o romance não servem para romantizar as injustiças e o sofrimento, mas para lhes dar visibilidade e dignidade.
2 Commentários
Uma crítica que leva a sonhar e a querer ler o livro. Obrigado pelo resumo que diz tudo sem ser spoiler!
Fantástica descrição da obra, deste autor que me encanta, com tudo o que escreve e descreve na sua atenta forma de observar o mundo que o rodeia.