O que a capitã do Sea Watch 3 tem a ver com o novo livro de Philippe Claudel? A italiana Carola Rackete e o escritor francês, no comando de um navio ou de um livro, tentam, cada um à sua maneira, dar um sentido a um dos maiores dramas da história recente da humanidade, com milhares de vidas em fuga a naufragarem no Mediterrâneo (e também no Rio Grande ou ainda na aridez da fronteira mexicana com os EUA, pois, sim, é possível se naufragar até nas areias de um deserto).
“O Arquipélago do Cão” (Sextante, 2019) tecnicamente é um romance policial: há corpos, três deles de homens negros, estirados numa praia. Há também um comissário, uma investigação, embora relativamente desnecessária, pois os culpados desde já se sabe quem são: somos todos nós.
O drama da migração em massa é o subtexto da (belíssima) escrita concisa e mordaz de Claudel. Mais que um livro, uma radiografia contemporânea da debilidade moral humana. A trama é simples, pois a situação sobre a qual se debruça a história já é complexa por si só: após os três corpos serem encontrados, é preciso que os moradores decidam o que fazer com eles.
O óbvio, que seria reportar às autoridades o aparecimento dos mesmos, poderia comprometer a instalação de um salvador resort no arquipélago, um conjunto de ilhas vulcânicas, carente de praticamente tudo e, como se verá adiante, inclusive de bons sentimentos. A solução encontrada parece a ideal, até a súbita chegada de um comissário de polícia.
Claudel sabiamente elegeu personagens que representam estratos sociais: um professor, um médico, um padre, um político, além de operários e do já referido comissário de polícia. O pequeno arquipélago, portanto, é um microcosmo de uma sociedade, um espelho cujo reflexo nem sempre é agradável.
Há ainda um vulcão, a reificação do divino, que em sua altivez impõe sua presença a todos, ao mesmo tempo que a todos observa e constrange, com as constantes alterações de humor. O vulcão, nem ele, escapa ao papel para o qual foi escalado e, se clamam pela intervenção de um “deus”, é certo que intervirá.
Pela escolha do tema e a elegância da escrita, “O Arquipélago do Cão” é uma daquelas obras que não deveriam figurar nas livrarias na sessão de ficção nem de não-ficção, mas de livros “urgentes”.
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