“O Aprendiz” (The Poets and Dragons Society, 2018) é um poema longo, dividido em cinco cantos, que descreve uma viagem pela consciência humana, onde a vida e a morte coabitam (e se confundem) numa única dimensão. Como referido no seu prefácio, estamos perante uma “epopeica travessia de uma vida”, numa espécie de “relato intemporal”.
D. H. Machado nasceu em Lisboa no ano de 1974. Começou a escrever poesia aos 12 anos e fê-lo ao longo de toda a sua adolescência. Após os 20 anos dedicou-se à vida académica e profissional e “O Aprendiz” marca o seu regresso à escrita. Em 2003, foi-lhe atribuído o Prémio Revelação Cesário Verde pela obra “Dionísias: As celebrações”, escrita quando tinha apenas 19 anos. Mais não conseguimos apreender – apenas que invoca Rimbaud na sua biografia (no entanto, não o tomamos como pomposo).
Após a leitura do prefácio elaborado por Ana Sofia Paiva, que nos trata coloquialmente por tu, temos vontade de ler de forma efusiva este “caminho-poema”.
Por estarmos perante um tipo de poesia moderna não há qualquer agarrar a uma métrica regular, esquema rimático permanente ou número de estrofes estruturado. As rimas aparecem, utilizando uma imagem visual partilhada pelo Aprendiz, “suave(s) como a brisa da manhã”. Há ritmo, que se marca por uma “atmosfera intensa e dramática”, e o poema é rico em alegorias, repetições lexicais, e outras figuras de estilo típicas da contemporaneidade. A pontuação inexiste (como em “decoram-se templos igrejas catedrais” ou “nem tarde nem cedo sem coragem nem medo”) e parece indiciar que cada estrofe consubstancia uma “frase”- ainda que existam alguns pontos de interrogação (como em “que estranhos desígnios comandam o destino?”) e “prefácio.”, “argumento.” ou “notas.” insistam em possuir pontos (esperemos que assim não seja por meras razões estéticas).
De realçar a alusão enquanto “bengala estilística”, num constante recurso à intertextualidade- tanto por entre as estrofes (algumas destacadas com itálicos que remetem para as “notas.”), como no fim de cada canto com uma referência que se dita “internacional”. O Aprendiz é um evidente fã de Shakespeare (mas quem não é?) e deposita muitas das suas inspirações em T. S. Eliot.
Este “poema-solenidade” inclui reflexões filosóficas (como em “a verdade usa palavras curtas”), alteração de pontos de vistas (como em “eu caminho a seu lado/ mas os meus passos são pesados” e “sinto a leveza do meu corpo como nunca o senti”), presença total de traços de sensacionalismo (“gritos vitórias e celebrações/ assumem formas de animais”) e paixão pela descontinuidade, enquanto forma de pensamento não-sequencial (como em “imitam animais selvagens vendidos a granel/ tornam pensamentos livres em actos de loucura/ e actos de loucura em frutos proibidos/ são os viajantes que o vento enobrece”).
Denota-se uma sensação de superioridade por parte do Aprendiz em relação à sua própria consciência, raciocínio e pensamento, que, na verdade, por supostamente estarmos perante o referido se funda em nadas- como em “eu vejo tudo” (quem é o Aprendiz para o saber?) ou “estes que viajam a meu lado/ iguais em engenho e disposição (…)/ estes são anjos e não demónios” (quem é o Aprendiz para o saber?) ou “e vede que dissonância resulta” (quem é o Aprendiz para o saber?) ou “eu sou o mensageiro” (quem é o Aprendiz para o saber? Mensageiro do quê?) ou “carregar contra um exército de fantoches” (ele não o é?). Parece-nos presunçoso atendendo ao aparente inicial propósito. Não aparenta tratar-se de um Aprendiz que, por definição no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, corporiza quem “aprende ofício ou arte” ou “sabe pouco de alguma coisa”.
Diz-se da poesia moderna que esta não tem de ser compreendida: cada um tira do poema o que precisa de tirar (que pode não ser o que o poeta inicialmente pretendia). Diz-se, também, que o leitor deve pescar sentimentos (como poderíamos fazer em “e sinto o peso desta esfera imperfeita”), e que estes preenchem as aberturas e indefinições deixadas a cargo do leitor por completar. Esperemos que todos estejam munidos de uma cana de pesca.
Neste tipo de poesia, e, por consequência, neste poema, mais rapidamente conseguimos apreciar “partes” (como em “o inferno está vazio/ todos os demónios estão aqui”), que apreciamos o “inteiro”. Há uma fragmentação subtil, imprevisível- talvez seja esta a beleza. No entanto, receamos não antever a possibilidade de tratar a obra como despida destes “fraccionamentos” que auto-subsistem. Por vezes sentimo-nos “fora da festa”, como que não convidados a entrar obrigados a festejar de fora.
Muito respeitamos a autoproclamada “ambição dum deus”, porque a ambição é pôr mão na esperança. Parafraseando Marcus Aurelius: o valor de alguém, mede-se pelo valor das suas ambições. Dessarte o podemos fazer com o Aprendiz.
Aconselha-se a leitura de “O Aprendiz” a quem quer sentir um pouco do fogo do querer e do saber, e a quem experiencia cada estrofe sem necessidade da existência de um todo (não queremos uma maçã na sua íntegra… basta a dentada).
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