“Eu me interesso pelo existencial, tanto nas peças como nos livros, independentemente da corrente política ou económica vigente. Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro, foi taxado de reaccionário. E, durante essa época, outros autores – mais sub-autores – de esquerda, eram incensados, ao contrário do Nelson que era tratado como um cachorro morto. Só que, mesmo reaccionário, Nelson Rodrigues era muito maior que o sub-esquerda, por ser existencial, de um lugar que não é de direita ou de esquerda: pertence à arte.”
As palavras acima transcritas pertencem a Fernanda Torres, numa recente entrevista ao Deus Me Livro sobre “A Glória e o seu Cortejo de Horrores”, o segundo romance da actriz brasileira, falando então sobre Nelson Rodrigues. Um personagem que, tal como encontramos na contracapa de “O Anjo Pornográfico” (Tinta da China, 2017), uma incrível biografia assinada por Ruy Castro, conseguiu agitar os extremos impedindo qualquer meio-termo na sua apreciação. Génio ou louco? Tarado ou pudico? Reaccionário ou revolucionário? Raivoso ou apaixonado?
Logo no lançamento, Ruy Castro trata de rejeitar “O Anjo Pornográfico” como um estudo crítico ou académico, dando a entender que se tratará, antes, de uma viagem literária apaixonada, feita de desvios, qualquer coisa como um livro de aventuras biografado.
“Esta é uma biografia de Nelson Rodrigues, não um estudo crítico. Aqui se encontrará onde, quando, como e por que Nelson escreveu todas as suas peças, romançes, contos e crônicas, mas não se espere «análises» ou «interpretações». O que se conta em O Anjo Pornográfico é a espantosa vida de um homem – um escritor a quem uma espécie de imã demoníaco (o acaso, o destino, o que for) estava sempre arrastando para uma realidade ainda mais dramática do que a que ele punha sobre o papel.”
Ruy Castro, de quem a Tinta da China já havia publicado “Carnaval no Fogo”, um livro de viagens internas – e com banda sonora – à capital do Carnaval, e também o recomendado “Chega de Saudade”, um regresso ao Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 e à história de uma geração que se fartou de dançar ao som do samba, parece ter o toque de Midas no que toca a fazer da biografia um território dado ao romance e, uma vez mais, não desilude: “O Anjo Pornográfico” oferece uma leitura extraordinária.
Entre a santidade e a canalhice, Nelson Rodrigues não deixou ninguém indiferente, tendo a certa altura sido perseguido por todos os quadrantes da sociedade brasileira: “A direita, a esquerda, a censura, os críticos, os católicos (de todas as tinturas) e, muitas vezes, as platéias – todos, em alguma época, viram nele o anjo do mal, um câncer a ser extirpado da sociedade brasileira. E, olhe, quase conseguiram“.
O livro viaja num sentido único através da linha temporal, num retrato carregado de sexo e atravessado pela ideia de morte, reconstruindo uma vida extraordinária a que não faltaram a pobreza e a fome, a cegueira da filha, a ascensão e a aqueda, as doenças fatais e a ideia de tragédia que pareceu estar sempre ligada à sua família.
Recuamos a 1912, época em que o Recife fazia lembrar a Verona de Romeu e Julieta; visitamos a Rua Alegre de 1919, onde “as vizinhas eram mesmo gordas e patuscas“, num cenário de violência que Nelson Rodrigues havia de espremer em futuras peças, romances, contos e crónicas; atravessamos 1924, quando a leitura e a escrita eram já uma constante; estacionamos em 1926, ano em que Nelson entra pela primeira vez na redacção de A Manhã, o jornal de seu pai – com 13 anos e meio começou a trabalhar como repórter policial, especializando-se em “pactos de morte entre jovens namorados” enquanto praticava sexo com profissionais e se iniciava nas idas aos bolsos do progenitor; saltamos para 1928, ano da promoção para a cobiçada página três, a dos editorialistas, onde escrevia artigos assinados, um por semana. Aos 16 anos e meio, nunca mais voltaria a meter os pés numa escola. E por aí adiante, numa viagem onde há surpresas e revelações a cada virar de página.
O livro inclui ainda dezenas de fotos a preto e branco, legendadas, bem como um extenso elencar da obra, uma sumarenta bibliografia e um índice onomástico, tudo para nos servir a biografia romanceada de um homem que ficou inscrito na história brasileira e, por que não, na história universal. Depois deste festim, é fazer figas para que a Tinta da China continue a sua propecção por terras brasileiras e publique “Vale Tudo”, a biografia de Tim Maia assinada por Nelson Motta.
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