Em 2022, a Academia Sueca atribuiu o Prémio Nobel da Literatura à francesa Annie Ernaux, destacando, entre outros aspectos da sua escrita, a maneira como “examina, de forma consistente e a partir de diferentes ângulos, uma vida marcada por fortes disparidades de género, língua e classe”. “O Acontecimento” (Livros do Brasil, 2022) é uma das suas obras onde esse tipo de exame é particularmente eficiente: em menos de cem páginas, através da história de um aborto clandestino, reúne uma série de episódios que poderiam servir de base a dissertações sobre desigualdades sócio-económicas e de género.
Publicado em França no ano 2000, este livro apresenta-nos, como narradora e protagonista, uma jovem de 20 e poucos anos, bolseira no ensino superior. É o primeiro elemento de uma família de operários e pequenos comerciantes a frequentá-lo, por isso julga ter escapado a uma vida de trabalho mal remunerado numa fábrica, ou atrás de um balcão, até ao momento em que uma gravidez ameaça destruir os seus planos e condená-la à pobreza. O seu desejo de abortar é inabalável, mas estamos na década de 1960, quando esse procedimento – e até a propaganda anticoncepcional – era ilegal, pelo que só lhe resta a clandestinidade.
Até encontrar uma abortadeira, a consciência da gravidez domina o seu quotidiano, sobrepondo-se a todas as outras experiências e separando-a do resto do mundo. Procurar ajuda é complicado, uma vez que nem sempre vem de onde se espera. Concluído o processo, o trauma que persiste não resulta de arrependimento, nem das questões bioéticas habitualmente debatidas quando se fala de interrupção voluntária da gravidez, mas sim das circunstâncias em que esta se realizou, implicando medo, risco e humilhação.
Os profissionais de saúde não saem bem vistos desta história, sendo marcante a assimetria nas relações de poder entre os médicos (que aqui são todos do sexo masculino) com a paciente. Entre juízos de valor e comportamentos censuráveis, nem mesmo aqueles com atitudes mais ambíguas em relação à lei aceitam dispensar a ajuda solicitada. Um dos poucos momentos satíricos do texto é quando um médico se espanta por a rapariga que atendeu não ter dito que frequentava o ensino superior, pois isso ter-lhe-ia garantido melhor tratamento. Outro é quando a protagonista descobre que muitos dos seus conhecidos – incluindo um outro médico – estão na posse de informação que lhe teria sido útil, mas só lha divulgam à posteriori, para explicar que poderia ter realizado um aborto mais barato e em melhores condições.
A partir desta experiência íntima, a autora constrói, numa linguagem muito directa, uma narrativa poderosa sobre a condição feminina, de cariz assumidamente autobiográfico, denunciando aquilo que foi, ainda é, e pode voltar a ser a realidade de muitas mulheres:
“As coisas aconteceram-me para que eu me aperceba delas. E o verdadeiro objetivo da minha vida é, provavelmente, apenas este: que o meu corpo, as minhas sensações e os meus pensamentos se transformem em escrita […] – a minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”
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