Após oito edições em Lisboa, a Noite da Literatura Europeia deslocou-se das emblemáticas colinas, ruas e edifícios históricos da capital para rumar a Oeiras que, num miradouro natural, plantou um jardim de homenagem à poesia e aos seus poetas, lugar onde a inspiração não poderia ser melhor: bonitas vistas sobre o mar, o Farol do Bugio e, ao longe, a emblemática Ponte 25 de Abril. Apesar do fim de tarde ventoso e da noite fria, que teimou em arrancar público às encenações (todas ao ar livre), a vista continuou maravilhosa, deixando contemplar toda a costa desde a Cova do Vapor ao Espichel. Vista que consiste num dos melhores brindes desta localização, juntamente com algumas esculturas muito bem enquadradas.
Na ronda desta noite ouvimos uma conversa muito à frente, rumo ao sul, entre Pavel, o punk fora do seu lugar, e um camarada de road trip que, dissertando sobre o rumo da vida, procuravam um amigo desaparecido. Não terá sido a melhor prestação de Ulisses Ceia (desta vez com Sara Pereira), talvez pela falta de alguns adereços para transmitir o ambiente juvenil da obra da alemã Sarah Jäger.
Viagens, verões escaldantes, férias, jantares de amigos e cervejas não faltaram nas leituras desta noite, sentindo-se ainda assim a falta de edifícios, cafés, galerias, pátios e espaços a que este evento nos habituou. Apanhámos uma boleia da Polónia que, no seu simbólico Fiat 126 Polski, nos fez percorrer as aventuras amorosas de Pawel e Ciwle, a sua instrutora de condução.
Continuámos em viagem, desta vez por mar alto e agitado, um mar cheio de força bruta, um mar em fúria que faz naufragar: “Pena um, penam todos!”, repetia a maravilhosa e sempre surpreendente Ana Sofia Paiva, juntamente com os bailarinos Beatriz Mira e Tiago Barreiros, dando corpo à narrativa de Ana Margarida de Carvalho no seu “Não se pode morar nos olhos de um gato”. Uma encenação muito bem conseguida, entre o excerto escolhido, as imagens conseguidas pelos bailarinos e o enquadramento com as esculturas que os envolviam.
O frio obrigava a mexer, pelo que fomos deambulando e ouvindo as palavras que nos chegavam da França, Hungria e Áustria, palavras que se interrogavam sobre a natureza humana, a vulnerabilidade, a necessidade de refúgio e o peso da cultura, tradições e dúvidas, que vão da maternidade à idade adulta. “Como se ensina uma criança a tornar-se um ser humano?, perguntava Leonor Alecrim, expiando as dores do romance austríaco de Valerie Fritsch, ao mesmo tempo que Cátia Tomé dava uma aula e expunha o romance “O País dos Outros”, de Leila Slimani, enquanto Miguel Lourenço narrava o refúgio que pode ser a música e a certeza de que o sistemas vão e vêm de 7 em 7 anos. A questão, essa, mantinha-se: que podemos fazer para que não se desmoronem as liberdades?
Em passo acelerado visitámos a Roménia que, do topo junto à pirâmide, convidava a contemplar a vista já em tons crepusculares. Descemos então à Eslováquia, mas o frio não quis que nos sentássemos para uma cerveja com o protagonista do conto de Dusan Mitana que, numa leitura muito entusiasta de José Frutoso, fazia rir quem por ali se sentou. Com público garantido, as leituras de “Céruse”, policial ao estilo luxemburguês, acompanharam quem parou para petiscar no Quiosque.
Descemos depois as escadas com a Itália, lida em ambiente medieval com “O Segredo do Mercador de Livros”. A Finlândia precisava de imagens em grande, talvez espalhadas pela distância, essa distância que dava corpo à narrativa do livro de Banda Desenhada que Ana Água interpretou. Na Espanha, Pedro Saavedra recomendou vivamente “Terra Alta”, de Javier Cercas, e escolheu ler-nos uma passagem que mostrava o poder da leitura e da releitura, mostrando que os livros transformam-se, juntamente com os leitores.
A despedida não se fez sem uns poemas de Petr Borkovec, o autor checo que afirma: “(…) os meus textos parecem íntimos, mas não são. É literatura”. As leituras foram feitas em checo pelo autor e em português por André Amálio, a quem faltou alguma entrega da voz a essa quase intimidade.
A poética desta noite foi feita da paisagem do mar imenso e das palavras de mais de uma dezena de países que, em poucas horas, nos levaram a calcorrear épocas distintas, acompanhando-nos no regresso a casa com uma série de ideias alheias – como as da obra austríaca, que nos dizia que o corpo tem uma espécie de tristeza que só a dor pode expressar.
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