Noite de 12 de Outubro. As luzes do Bairro de Carnide começam a brilhar, a atmosfera transforma-se numa fusão de literatura e comunidade. A 12.ª edição da Noite da Literatura Europeia (NLE) promete uma experiência rica e diversificada, reunindo vozes de 18 países europeus. O compromisso mantém-se de ano para ano: fazer de cada sessão não apenas uma série de leituras mas, sobretudo, uma viagem através da interpretação de cada actor ou actriz, numa fusão com o espaço que se torna palco a cada nova representação.
Os espaços escolhidos para as leituras – Boutique da Cultura/Livraria Solidária, Farmácia Quinta da Luz, Junta de Freguesia de Carnide, Escola Básica, Colégio Militar ou, simplesmente, um café-esplanada – foram tão diversos quanto as obras e os temas apresentados, tornando-se palcos de criatividade literária e contribuindo para a atmosfera única de cada leitura, proporcionando um cenário intimista para a partilha de cada livro ou poema.
O livre acesso é um dos pilares fundamentais, juntamente com a preocupação com a mobilidade dos visitantes. Este ano a NLE foi mais longe, oferecendo aos visitantes surdos sessões com interpretação em língua Gestual Portuguesa (LGP).
Da Alemanha, Katja Oskamp trouxe-nos “Marzahn, Mon Amour”, uma obra que revela as histórias de vida de uma comunidade em Berlim através da lente de uma escritora de meia-idade, e que explora os «anos invisíveis» que todas as mulheres podem enfrentar a partir dos 40. A interpretação esteve a cargo da fabulosa Sofia de Portugal que, estabelecendo as margens entre as idades invisíveis da mulher, escolheu excertos que servem de poderoso lembrete: cada vida carrega um universo de experiências e ouvi-las pode ser enriquecedor.
Foram várias as leituras que exploraram a profunda fragilidade da vida, entre elas, as da Bélgica, França ou Itália, com a sua dupla de malnascidas.
A complexidade das relações humanas é tema recorrente, mas “O silêncio dos surdos“, da polaca Anna Goc, superou todas as expectativas, muito graças à leitura emotiva de Cláudio Henriques.
Outra leitura muito interessante, fosse pela temática, a interpretação ou o espaço, foi a dedicada à obra “Os Funcionários”, da dinamarquesa Olga Ravn. Depois daquela sessão, quem lá esteve nunca mais entrará numa farmácia sem se lembrarmos da crítica à supremacia do trabalho, da rotina que aprisiona e consome a essência humana. Receitará a autora medicamentos e dependências para melhor se suportar o trabalho? É ler Olga Ravn.
Outra interpretação para o top foi a que esteve a cargo de Pedro Saavedra, que nos brindou com a sua teatralidade habitual, dividindo o palco com Pedro Araújo – na guitarra – e a bailarina Raquel Oliveira, num dos espaços mais concorridos da noite. Tudo para nos rirmos das peripécias do General Spinola, reinterpretadas por Manuel Vásquez Montalbán em “Por enquanto, o povo unido ainda não foi vencido”, uma colectânea poderosa que serve de lembrete à luta pela liberdade de expressão, e à importância de nos mantermos vigilantes em tempos de mudança dos ventos ditatoriais.
Sobre opressão, ditadura e libertação, a literatura estoniana trouxe, com “País Fronteiriço”, de Tõnu Õnnepalu, uma perspectiva sobre a libertação e a ansiedade que podem acompanhar a restauração da independência nacional. Cheila Lima deu voz às emoções conflitantes de um povo em transição, num cenário que apelava aos sentidos.
A variedade de géneros literários é outra das característica mais marcantes deste evento. No Colégio Militar, celebrou-se a Poesia e os quinhentos anos do nascimento de Luís Vaz de Camões, num ano de muitas celebrações e marcos cronológicos.
Entre poesia, narrativas mais gráficas, contos trágicos ou poemas emotivos, relatos mais biográficos ou políticos, existiram leituras para todos os gostos. A voz de Lígia Cruz, por exemplo, provocou uma reflexão sobre a importância das histórias que se encontram em “O peso da sombra“, do checo Stanislav Struhar.
Outro momento alto da noite foi a leitura de “A Malnascida”, da italiana Beatrice Salvioni, que explora a amizade e os laços que se formam em tempos de adversidade. Carolina Amaral escolheu muito bem as passagens que demonstram a luta interna e a busca pela identidade, num mundo que frequentemente marginaliza os que são diferentes – e as mulheres.
Por último, grande destaque para a qualidade das actuações de Inês Lapa (sempre na Irlanda) e Ulisses Ceia (sempre no Reino Unido), que transmitiram de forma exímia a densidade psicológica dos excertos, com ambos os livros a situarem-se na fronteira expectativa vs. realidade das relações familiares.
Nota mais para as figurinhas de cartão, que marcavam os momentos de cada personagem no romance “Canção do profeta“, de Paul Lynch, e o cenário parco e escuro que adensou a voz de Ulisses Ceia ao interpretar “A família perfeita“, de Lisa Jewell.
A NLE não é apenas mais um evento, antes uma celebração da literatura europeia e da diversidade cultural que esta representa, com cada um dos momentos de leitura a explorar as infinitas possibilidades de reflexão, diversão e a viagem que a literatura tem para oferecer.
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Fotos: © Carlos Porfírio, Puro Conceito
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