Abertura
“A realidade é apenas uma fantasia exageradamente bem penteada, disse o escritor sérvio Goran Petrovic. O que me agrada particularmente nos blues é precisamente a recusa em pentear a realidade (…). Nos blues há uma denúncia constante da opressão, da injustiça, do racismo, da miséria.”
A genialidade, a desordem, a excitação e a entrega que se observam neste vídeo de Glenn Gould, revelam-se também ao longo da leitura de “Nem todas as baleias voam” (Companhia das Letras, 2016). Fará talvez por isso sentido unir esta peça de Bach, tocada por um outro Gould, ao Gould que Afonso Cruz criou, oferecendo ao leitor um enredo carregado de blues e de frases com dotes de pugilismo, tal como esta, presente na abertura do livro, e que encerra em si mesmo um género de caixinha de sapatos para doentes terminais, coleccionadores de dores mas, também, de muitos pequenos momentos de magia.
“Traço mapas com histórias obscuras, que iluminam becos, atalhos, lugares que ninguém se lembraria de percorrer.”
Desde cedo percebemos que há aqui uma ode ao belo dentro da maldade e do mal. Aliás, somos logo avisados para essa maneira sórdida e até perversa de alimentar esse engenho do mal, do medo e do aberrante como solução para nos mantermos à tona, à superfície da sobrevivência. Parece estranho? Se não o fosse é que seria de estranhar. Estamos novamente perante um livro intenso e imenso de Afonso Cruz, onde as personagens e as histórias se cruzam de tal forma que, mesmo a muitos quilómetros de distância, ganham uma intimidade que chega a fazer doer.
“Depois abria os olhos, concentrava-se nas fotografias do atlas correspondentes ao território escolhido pela ponta do dedo (as fotografias ficavam sempre com a marca da unha do indicador, porque Tristan, ansioso e triste, deixava que alguma violência lhe saísse pelo dedo ao pressionar o lugar onde estaria a mãe.
(…)
– Onde estava ela?
– No mar.
Naquela manhã não lhe apeteciam frases compridas, foi só isso, mar, que é uma das palavras mais profundas e o lugar onde o dedo se espetara, uma marca de unha de indicador no meio da água.”
Relatório Gould
O leitor vai entrando lentamente, atraído para esta espécie de improvisação que pauta uma estratégia de encher os sentidos e explorar as emoções, apelando à palavra escrita, à cantada ou até àquela que não se ouve, mas está lá, saindo pela ponta de uns dedos que exprimem afecto e sentimentos profundos, tocando melodias que são autênticos relatórios das marcas que o tempo deixa.
“(…) uma lesão incurável.
– Vês?
– Não há pomadas?
– Dizem que o tempo cura.
– O tempo é uma pomada?
– Uma espécie de pomada.
– Não tem funcionado, pois não?
– Não. É que também vamos criando afecto pela dor, ela diz-nos que estamos vivos (…)”
Epílogo
“O corpo dela cheirava agora a sabão, mas não disfarçava o odor intenso a uma certa solidão que lhe dava um ar quase etéreo, de quem vive acima do lodo do quotidiano (…)”
É neste acima do lodo do quotidiano que a história vai avançando, orientando-se na geografia do que é estranho mas se intromete nas vidas, pejadas de dor e de solidão; mas, também, abertas à esperança que desponta aqui ou ali, como uma música que passa por uma frincha, uma brecha, e nos entra na cabeça permitindo a redenção que todos procuramos, corrigindo diferenças e tratando-nos do coração.
Mensagem Arquivada
Texto também publicado no Efeito dos Livros
Sem Comentários