Com “Naufrágio” (Companhia das Letras, 2022), João Tordo veio dar corpo a personagens que expressam o quotidiano da vida romantizada de quem se afirma pela escrita, alcançando fama e protagonismo social. Escritor reconhecido e premiado, refém do ego e dos compromissos com o público, Jaime Toledo reaparece pela mão de João Tordo para dar corpo a uma figura em processo de auto-destruição. Dez anos sem escrever e uma vida no limite das convenções sociais colocam-no no epicentro de um verdadeiro tornado. Jaime Toledo é um homem na meia-idade da vida, em profunda crise existencial, confrontado pela decadência física e moral da sua existência. Doente, sozinho e hostilizado pela sociedade, confronta-se com as consequências de uma existência hedonista e auto-centrada, com o narcisismo letal de uma existência que o colocou em confronto com todos aqueles que o amavam.
Alvo de acusações, por parte de várias mulheres, de assédio sexual, envereda pelo isolamento e pela reflexão em torno da relevância da transgressão na arte – terá o artista que ser um depravado? Um destruidor de fronteiras pessoais e sociais?
Depois de, em 2017, o jornal americano New York Times ter publicado uma reportagem com acusações que apontavam para décadas de abusos, agressões e assédios sexuais cometidos no meio cinematográfico, centenas de mulheres no mundo inteiro começaram a sair do silêncio e a denunciar agressões sexuais e sexistas. Tratou-se do movimento #MeToo, que encorajou as mulheres a relatar, nas redes sociais, as suas experiências de abuso verbal e físico, assim como actos de violação. Em Portugal, as denúncias públicas surgiram (sobretudo) nos meios desportivos e no mundo televisivo.
No mundo ficcional de João Tordo, distante dos tempos de espiral narcísica, Jaime Toledo acaba por ficar chocado com o impacto do seu comportamento relatado como abusivo e lesivo. À distância, constrange-se com a perversão por trás dos momentos de euforia coincidentes com o auge da sua existência artística, com a coexistência de reconhecimento público e o silêncio da auto-comiseração. Surpreendentemente, acaba por ser nos momentos de maior isolamento e carência que se sente livre e próximo da essência da sua existência.
Sem colocar em causa o valor do movimento #MeToo, a situação de Jaime Toledo acaba por retratar o outro lado do processo, ditado pelos efeitos da mediatização e hostilização dos visados, em desvalor da orientação formal dos processos judicias e uma mitigação do princípio da presunção da inocência. A maior parte das denúncias foi feita nas redes sociais, com recurso a um espaço público ilimitado e absolutamente descontrolado, com julgamentos antecipados em praça pública e ao ritmo alucinante das redes sociais. Se é justo? É um tema complexo.
Uma história de abuso, no limiar da sanidade e da moralidade. O relato de situações limite e Jaime Toledo: um solitário e doente que nunca soube viver, ferindo de morte os seus amores.
“Se me perguntassem agora pela minha história com as mulheres, eu responderia, com sinceridade, embora não sem embaraço, que era uma história de traição. Nunca pensei em mim como mulherengo (já o disse), muito menos como predador; olhando em retrospectiva, era-me impossível, no entanto, não constatar que, ao longo doa anos, atraiçoara inúmeras vezes as minhas companheiras e os princípios que estabelecera, fazendo repetidamente o oposto daquilo que professava – como se o meu mais secreto desiderato fosse ser infiel à minha palavra.”
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