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“Não há Pássaros Aqui” | Victor Vidal

Por Ana Ilhéu · Em 13/01/2025

“Não Há Pássaros Aqui”, de Victor Vidal (Leya, 2024), é um livro intenso e imprevisível, que utiliza a infância como território de fascínio. Ao recuar à infância de Ana, da sua mãe Andrea e do amigo Benjamim, é estabelecida uma aparente linearidade entre a mágoa que perdura em vidas marcadas e o ressentimento, como se não fosse possível a cura.

A personagem central do livro, Ana, já adulta, é avisada de que a mãe, Andrea, estava desaparecida. Havia anos que conseguira distanciar-se dela. Agora, forçada a regressar ao espaço e ao tempo em que as memórias avivam traumas que desejava enclausurados, confronta-se com uma jornada – a sua própria vida – onde parece não haver redenção.

Cinco anos depois do último contacto com a mãe, Ana volta a encontrar-se num beco sem saída, revivendo episódios que julgara sepultados, reencontrando Benjamim – o amigo que julgava desaparecido – e recrudescendo em comportamentos que a impeliam para uma bizarria que a ajudava a lidar com a dor. Eis a evidência destas três personagens: ainda que procuremos desligar-nos dele, o passado permanece um universo de grandes emoções que perduram, como alegrias, traumas ou anseios, que permanecem para além das experiências e das características do tempo em que estão inseridos. Victor Vidal, que com este seu primeiro romance foi Prémio Leya 2023, revela como a memória pode funcionar como uma névoa – de longe, poderá parecer inofensiva e ténue, mas tentar desenvencilhar-se dela não é tão fácil como se imagina.

“Como uma criança que escrevia poemas sobre pássaros se tornara uma mulher tão agressiva?”. Ana é uma personagem extraordinária, na qual as memórias de uma mulher adulta remontam à infância e à forma como sobreviveu a todo o tipo de abusos e de maus-tratos, à sua prolongada exposição em territórios desertos de amor e, por último, à superação assente em sentimentos conflituantes. Para tanto, o leitor entra em casa de Ana e de Andrea, acompanha a forma como a primeira, ainda criança, procura alhear-se e sobreviver à solidão e ao alcoolismo da mãe, depois à violência física e ao abuso sexual e, por último, à instrumentalização da sua infância para camuflar um desfecho inevitavelmente trágico.

Aos trinta e dois anos de idade, depois de anos sem ver a mãe, Ana volta a confrontar-se com o desejo de se manter afastada e de ter agora a oportunidade de a encontrar em apuros. Daí que aceda voltar a casa para tentar perceber o que está por trás da sua morte – aparentemente por afogamento, depois de ter perseguido uma família, massacrando-a com telefonemas incessantes.

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Ana é uma vítima refém da memória e do cárcere onde foi violentada, como se precisasse dele para confirmar a sua existência e identidade. A forma como se refere à mãe, sempre pelo nome, amplia o distanciamento entre as duas mulheres e a dimensão do que as separa. O suspense sobre o que teria acontecido entre ambas torna-se catalisador da leitura, impregnando-a de avidez pela descoberta.

Os encontros sórdidos de Ana com desconhecidos, a sua tendência para a auto-destruição, a raiva e o medo, evidenciavam a forma como por vezes as vítimas podem substituir o trauma pelo desejo de perpetuar a crueldade, tornando-se aos olhos dos outros elas próprias repulsivas e hediondas.

São muitos e diversificados os elementos que Victor Vidal reúne para falar de violência doméstica, maus-tratos infantis, alcoolismo e abuso em geral, mostrando como o trauma pode assumir, nas vítimas, expressões muito diferentes. Ana e Benjamim, dois jovens que se haviam conhecido num antigo asilo, o Orfanato Retiro dos Pássaros, revelam como por detrás da maldade, da agressividade e de outros comportamentos de verdadeira bizarria, existe quase sempre alguém em sofrimento.

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Ana Ilhéu

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