É uma sensação estranha, segurarmos nas mãos um conjunto de textos que sabemos terem custado a vida a uma pessoa. Anna Politkovskaya (1958-2006), jornalista multipremiada da Novaya Gazeta, depois de anos a escrever sobre temas incómodos para os governantes da Rússia, para o exército e os serviços de segurança, tendo sobrevivido a dezenas de reportagens em cenários de guerra no Norte do Cáucaso, a detenções, a ameaças, e até ao envenenamento com uma toxina desconhecida que chegou a deixá-la em coma, morreu baleada à entrada da sua casa, em Moscovo, a 7 de Outubro de 2006, data de aniversário de Vladimir Putin. “Nada Mais do que a Verdade” (Elsinore, 2023) é uma compilação póstuma daqueles que foram considerados os seus melhores artigos, aos quais se juntam fragmentos inéditos, recuperados do seu computador, do texto em que trabalhava à data da sua morte – um contributo para a compreensão da Rússia pós-soviética e uma justíssima homenagem a uma profissional que lutava pela liberdade de imprensa e pelos direitos humanos, recusando-se a fazer cedências na procura da verdade.
Grande parte dos textos diz respeito à guerra na Chechénia, e descreve atrocidades perpetradas pelo exército russo contra a população civil. Atentando às datas de publicação, é possível reconstituir o historial de políticas de aniquilação de um território, desde a fase em que o genocídio era praticado directamente pelas forças russas, até ao semear de disputas mortíferas que culminaram nos reinos de terror de grupos criminosos apoiados por Moscovo, tudo isto acompanhado por situações caricatas de corrupção/extorsão, bem como por um desprezo gélido quanto ao sofrimento de inocentes, sejam eles chechenos – caracterizados pelas autoridades como “pequenos animais peludos” –, ou refugiados russos.
A escrita empenhada da autora deixa transparecer o seu desgosto com a deriva anti-democrática da Rússia, marcada por “autoritarismo, tribunais subservientes, tortura nas prisões e assédio racial”, frustrando as reformas prometidas nos últimos tempos da URSS. Entre várias críticas aos abusos de poder, destaca-se a denúncia da manipulação, para obtenção de dividendos políticos, de crises de reféns como as ocorridas em Beslan, em 2004, ou no teatro moscovita de Dubrovka, em 2002, ambas com fins sangrentos. Mas também lhe causa revolta o comportamento de organizações internacionais, da ONU à União Europeia – que sacrificam a defesa dos direitos humanos à realpolitik –, para não falar da submissão de muitos dos seus colegas: “Uma atmosfera de estagnação moral e intelectual prevalece na profissão que também é a minha, e é preciso dizer que a maioria dos meus camaradas jornalistas não está muito preocupada com a transformação do jornalismo em propaganda em prol do poder”.
Numa sociedade onde os jornalistas não alinhados são agredidos e assassinados, Politkovskaya – cujo credo profissional era “O que importa é a informação, não o que se pensa sobre ela” – escolheu um caminho difícil, que a torna digna de ser recordada e honrada. Ao longo da leitura, é inevitável darmos por nós a pensar no que ela escreveria sobre a situação actual. O seu desaparecimento precoce é uma perda para todos nós.
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