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“Nada” | Carmen Laforet

Por Isabel Daires · Em 09/12/2024

Finda a guerra civil espanhola, em pleno regime franquista, uma jovem órfã de 18 anos, Andrea, chega a Barcelona para estudar na universidade, carregada com livros e sonhos esperançosos. Porém, o que encontra na casa dos familiares que se dispuseram a acolhê-la é uma realidade triste e opressiva, semelhante a um pesadelo.

A experiência é narrada na primeira pessoa em “Nada” (Cavalo de Ferro, 2024), o romance de estreia de Carmen Laforet (1921-2004), publicado pela primeira vez em 1945, que a censura em vigor deixou passar por ter avaliado mal o seu alcance. Vencedora do Prémio Nadal, a obra tornou-se um clássico moderno, no qual o microcosmos familiar representa uma Espanha marcada por psicoses várias, pela miséria e pela ausência de perspectivas de futuro.

As descrições da casa suja, fedorenta e escura, que desperta em Andrea um “horror surdo”, parecem saídas de um romance gótico, enquanto os habitantes fazem lembrar os quadros mais grotescos de Goya. Há uma tia chamada Angustias, dada a exibições de religiosidade, que acentua que Andrea tem de viver à custa da caridade alheia e procura aprisioná-la sob o seu autoritarismo. Há dois tios que estiveram envolvidos na guerra civil e se desentenderam a propósito da mulher que se tornou esposa de um deles, mais uma criada que tomou um partido e se regozija com os infortúnios dos restantes. Salvam-se a doce avó, o bebé, vítima dos desatinos dos adultos, e os bichos, igualmente inocentes. Na qualidade de espectadora de discussões terríveis e cenas de violência, Andrea recolhe fragmentos de segredos que levam aqueles seres a magoarem-se uns aos outros, como estilhaços de um passado que continua a ferir. Histórias turvas, incompletas, “apenas iniciadas e inchadas como um velho tronco numa intempérie”, que despertam a curiosidade do leitor acerca destas existências desesperançadas.

Na sua solidão espiritual, apesar do embotamento causado pelo desconsolo – para não falar da fome, ou do frio e do calor extremos –, Andrea observa, reflecte e jura não misturar o mundo das suas amizades de estudante com o da casa decrépita.

A partida de Angustias constitui um ponto de viragem na narrativa, deixando a jovem mais livre nas suas deslocações. Ganha então relevância o relacionamento com a bonita e afortunada colega Ena: “Pensei que estava realmente a começar para mim um novo renascer, que aquela era a época mais feliz da minha vida, já que nunca tinha tido uma amiga com quem me tivesse dado tão bem, nem esta magnífica independência de que desfrutava”. Contudo, essa disposição muda quando Ena, apreciadora assumida de “pessoas com aquele átomo de loucura que faz com que a existência não seja monótona, ainda que sejam pessoas infelizes”, se torna frequentadora da casa dos parentes de Andrea, por razões pessoais que só serão reveladas mais adiante.

Vale a pena destacar também, nesta fase exploradora de Andrea, a breve sátira a certos candidatos a artistas: os meninos de boas famílias que se julgam rebeldes e menosprezam os pais que os sustentam.

O retrato geral desta sociedade é sombrio, mas há nele um raio de esperança: apesar dos momentos de silêncio e conformidade, Andrea preserva uma chama interior que a impele a trilhar o seu próprio caminho, tornando-se nessa medida uma personagem inspiradora, mesmo nos dias de hoje.

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Isabel Daires

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