A História, além de nos ajudar a compreender melhor o presente, permite-nos desenvolver uma perspectiva crítica sobre ele. Por exemplo, as crises políticas nacionais de hoje parecerão menores se as compararmos com a turbulência que marcou o fim da monarquia e os primeiros anos da república. Um dos muitos incidentes ocorreu a 18 de Abril de 1925, quando um grupo de militares ocupou o Parque Eduardo VII, exigindo reformas, a redução das despesas do Estado e a reorganização do Exército e da Marinha. A revolta foi dominada em 24 horas, mas a instabilidade permaneceu. Note-se que, nessa altura, em menos de 15 anos de existência, a I República já ia no seu 42º Governo.
Fernando Pessoa (1888-1935) não se manteve alheio a esses acontecimentos, como demonstra o texto “Na Farmácia do Evaristo” (Guerra & Paz, 2020), onde ficcionou um diálogo entre cidadãos a propósito desta tentativa de golpe de Estado. Todavia, cedo percebemos que a revolução mais recente é um pretexto para a análise de outra, nomeadamente a que conduziu à implantação da república.
Na tarde de 19 de Abril de 1925, estando “restaurada a ordem visível”, a farmácia do Evaristo, que se manteve sempre aberta, começa a receber “os seus estacionários do costume”, de entre os quais se destacam Mendes, um republicano democrático, que se congratula com a derrota dos revoltosos, e José Gomes, que o contradiz, atacando aquilo que considera serem as fraquezas da república. Os outros, incluindo o próprio dono do estabelecimento, falam pouco, existindo apenas para animar a discussão e desafiar Gomes a expor as suas opiniões.
Gomes não se faz rogado e, num discurso com o qual podemos não concordar, mas cuja lógica de argumentação somos forçados a admirar, questiona a legitimidade das revoltas militares contra regimes a que juraram lealdade, a organização dos partidos, o sistema eleitoral e a própria democracia representativa. A iliteracia da população portuguesa também é criticada, com a educação e a instrução de um povo a serem consideradas as suas melhores defesas contra o despotismo, seja qual for o regime vigente.
O livro inclui, além do texto principal que lhe dá título, uma entrevista a Álvaro de Campos, um dos heterónimos pessoanos, onde encontramos repetidas as críticas ao sistema eleitoral. A classe dirigente portuguesa é aqui deveras maltratada, em frases como “Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina”, mas as de outros países não são tidas em muito melhor consideração e a classe operária também recebe o seu quinhão de insultos: “Os operários são todos uns idiotas”.
É difícil saber até que ponto Pessoa acreditava nos argumentos que expunha com tanta verve, directamente ou através de heterónimos, ou se tais textos eram apenas exercícios filosófico-literários. Uma certeza que podemos ter é que este conto, pequeno em tamanho e grande em conteúdo, permanece hoje tão polémico como no seu tempo, mantendo a capacidade de nos perturbar e fazer pensar.
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