Aviso à navegação: “embora algumas partes deste romance derivem de acontecimentos verídicos, cada personagem nele existente é ficcional, uma colagem de vários indivíduos e de imaginação”.
Em “Morrem mais de Mágoa” (Quetzal, 2021 – reedição) o Nobel Saul Bellow (1915-2005) conduz-nos por territórios onde se travam batalhas entre Eros e a racionalidade, em gente intelectual e moralmente superior mas profundamente vulnerável, na condução das suas necessidades sexuais e anseios de amor.
É-nos apresentado o tio Benn, Benn Crader, um famoso botânico judeu, reconhecido e expedito cientista, recorrentemente manietado pelo amor, limitado na sua habitual racionalidade e clarividência. Coabita, em si, uma angustiante seriedade e capacidade analítica com uma invulgar capacidade de, nos assuntos mais pessoais, se envolver em processos de verdadeira auto-destruição. Assim como se interessava por flores raras, fazendo longas expedições pelo mundo para as estudar, também no amor se interessava por personalidades improváveis, numa aparente transmutação da linguagem do amor para as flores e vice-versa, desejando em ambos os campos chegar ao fundo das coisas, misturando candura e malícia.
Aos cinquenta anos vive atormentado pelo desejo, refém do prazer. Depois de enviuvar e de uma sucessão de infelicidades sexuais casa com Matilda Layamon, uma mulher bela e independente. Achando que assim se libertava de divertimentos prejudiciais e de excessos, embrenha-se numa experiência que viria a acentuar a sua vulnerabilidade.
“Quando temos uma vista exterior do nosso comportamento, é insuportável. Seremos nós horríveis, ou quem nos vê?”
Numa entrevista, dissertando acerca dos perigos da radioactividade, Benn Crader afirmara que “a mágoa tem matado muita gente”, talvez mais do que as radiações atómicas embora não existam manifestações de rua contra ela.
Kenneth, o sobrinho, também é um académico, professor de literatura russa na mesma universidade que o tio. Trinta e cinco anos, educado em Paris, melancólico e com um parco poder comunicativo, opta por viver no Middle West, região recatada dos EUA, preocupado em defender os interesses do tio e, através deste, lidar com as suas próprias fragilidades no campo dos afectos e das relações. Tio e sobrinho desenvolvem uma relação extraordinária, de complementaridade e respeito, de genuíno interesse e cuidado pelo outro. Os diálogos entre ambos são intensos e escorreitos sobre quase tudo: o sentido da vida, família, mulheres e sexo. Ajudam-se e censuram-se; dececionam-se e recompõem-se.
Na companhia de ambos, o confronto com a iniquidade do mundo contemporâneo é inevitável, ao mesmo tempo que se bebe das fontes de conhecimento: autores relevantes, da filosofia à literatura, do ensaio à investigação científica, que formaram as suas personalidades. Raízes de conhecimento e cultura ocidental, mas também do Leste, possuindo ambas as personagens profundas ligações de consanguinidade com a Rússia, que perseveraram apesar da educação europeia e a vivência norte-americana. Entre estes dois polos percebe-se, em ambas as figuras, a oscilação entre o reconhecimento dado à provação do desejo e às feridas emocionais, especialmente presentes no ocidente, e o infortúnio da carência a leste. Dito de outra forma, o sofrimento da liberdade a ocidente, por contraponto com a provação imposta pelo totalitarismo frequente a leste. Em ambos, a evidência de uma nova forma de morte: o sofrimento.
A certa altura, uma personagem afirma que “não se pode entender a sociedade, nem as relações humanas, se não se leu Balzac”. Nesta linha, será que, como Balzac escreveu, filhas únicas nascidas ricas dão esposas perigosas? Tio Benn teve oportunidade de o experimentar.
Teria Tchékhov razão ao afirmar: “Se tens medo da solidão, não te cases”?
Tio e sobrinho vivem em cumplicidade, entre o reconhecimento profissional e a insatisfação das suas vidas privadas, num verdadeiro ramalhete de desgostos e de imbróglios com mulheres. Ambos desprovidos da habitual clarividência, sentem que o conhecimento desligado da vida é igual a uma doença.
Em 1987, onze anos depois de receber o Nobel, Saul Bellow já dominava o panorama literário internacional com a sua grande sensibilidade, desenhando retratos quotidianos de vidas nas quais magistralmente incluía tópicos de reflexão sobre a moral, o poder e a riqueza, a inteligência e o sensorial.
No final de “Morrem Mais de Mágoa”, a pergunta impõe-se: haverá velhice para a alma e um tempo limitado para amar? Por aqui, a resposta que apraz é: NUNCA é tarde para amar com alma, a melhor conjugação destas duas complexas equações.
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