A haver um prémio nacional para os melhores títulos literários, Ricardo Adolfo levaria para casa todos os primeiros prémios, à boleia de obras como “”Os chouriços são todos para assar”, “Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas” ou este “Mizé, antes galdéria do que normal e remediada” (Companhia das Letras, 2021 – reedição).
Imaginem Quentin Tarantino como prosador nascido em Rio de Mouro e terão uma ideia, mais ou menos atravessada, da prosa bem distinta de Ricardo Adolfo, que faz dele um dos mais entusiasmantes escritores portugueses. Alguém que eleva o calão a património linguístico da literatura e o usa como arma de arremesso para um ideal feminista, que carrega uma espingarda a tiracolo.
Quando recebe um convite de casamento, proferido sem grandes requintes de romantismo por parte do seu companheiro de cama, Mizé não se põe com rodeios: “– Oh Palha, vai com calma, bora mandar uma de cada vez e depois logo se vê”. Estamos no bairro social Esperança, nos arredores de Lisboa, onde Mizé trabalha com Luís num cabeleireiro unisexo, no qual é uma espécie de sócia sem direito a quota, sonhando com a operação que lhe vai dar umas mamas maiores ou com encontrar um desconhecido, com condutor particular, que a livre de andar em transportes públicos. Quanto a Palha, tenta vender a batata frita belga como a nova bomba salgada, isto enquanto vai afogando as mágoas e as várias falências no bar com amigos que se dizem machos, vendo filmes porno e pedindo rodadas que alguns não conseguem pagar.
Numa dessas noites de copos, embalado pelas cassetes de vídeo alugadas em clubes de vídeo de vão de escada, Palha descobre algo que o deixa em sobressalto, transformando-o no alvo de chacota dos amigos de café e relembrando-o, também, de que a sua vida encerra uma mentira: “…talvez assim conseguisse aliviar aquela agonia que o atormentava, só de pensar que um dia também ele podia ser descoberto”.
“Mizé, antes galdéria do que normal e remediada” mostra-nos as várias ligações e derivações de poder que atravessam um casal, a sociedade patriarcal e machista que resiste e vai atravessando gerações, mas também, como diz Carla a uma certa altura, que “a felicidade é muitas coisas diferentes”. Um novo romance de Ricardo Adolfo seria uma delas.
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