É um daqueles romances que, recorrendo ao vernáculo futebolístico, começa com uma entrada a pés juntos: “Querida favorita, digo-to já: devia ter-te removido, como se cortasse com uma faca uma úlcera da sola do casco. Nesse estio persistente, eu devia ter criado algum espaço na fenda do casco para que o esterco e a porcaria se soltassem e ningué te pudesse infactar, ou talvez devesse apenas ter-te descascado e esmerilado, esfregado e secado com um pouco de serradura”.
Em “Minha Querida Favorita” (Dom Quixote, 2023), Marieke Lucas Rijneveld diverte-se a reiventar o clássico de Nabokov à sua medida, fazendo com que este pareça quase um livro juvenil. Qualquer coisa como uma Lolita do mundo rural, que acompanha a história de um veterinário rural que se aproxima da filha adolescente do criador de gado para quem trabalha. Um livro que, tal como “O Desasossego da Noite” – que lhe valeu o Man Booker International Prize 2020 -, se recusa a fazer reféns, deixando atrás de si um cenário de destruição não aconselhável a leitores de estômago sensível.
O livro é escrito, em jeito de confissão – a certa altura, o narrador chama-lhe “apologia” -, por este veterinário, que sabe que “há algo de errado comigo, alguma coisa não bate mesmo certo”. Neste retrato da monstruosidade humana sob o olhar de uma julgadora magistratura, dá-se a conhecer um passado traumático que conduziu a um casamento sem luz, e no qual a figura desta adolescente surge como uma centelha de vida, um amor obsessivo, cruel e doentio.
Quanto à “querida favorita”, vive num mundo de fantasia após o abandono da mãe, conversando com Hitler, imaginando-se a embater contra as Torres Gémeas, convidando Freud para tomar chá e guardando, como um troféu, um pénis de lontra – isto enquanto não desponta a haste masculina que lhe foi prometida. Entretanto, vai sonhando com tornar-se uma estrela pop do futuro, tomando as palavras de Kurt Coban como uma premonição da grandiosidade que aguarda.
Marieke Lucas Rijneveld escreve como quem pega num bisturi, obrigando-nos a desviar a cara perante esta dissecação da solidão, do trauma e do amor proibido. Ao pé de Rijneveld, Nabokov é sem dúvida um menino de coro.
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