Algumas mentiras ferem a alma, traumatizam, enquanto outras suscitam apenas perplexidade. Em certas mentiras, entrevê-se uma finalidade – ainda que questionável –, a qual pode consistir na satisfação de necessidades de atenção, de compensação de frustrações, ou de reinvenção pessoal. Outras, porém, parecem não servir qualquer propósito racional. É possível que a capacidade de mentir esteja ligada à de contar histórias, e a autora russa Ludmila Ulitskaya estará provavelmente ciente disso, tendo composto um pequeno livro, “Mentiras de Mulher” (Cavalo de Ferro, 2023), que é como uma matrioska de ficções dentro de ficções.
Os capítulos quase poderiam ser lidos como contos separados, se não os atravessasse uma personagem cujo trajecto pessoal estabelece uma cronologia. O seu nome é Génia – provável diminutivo de Evgenia – e, no primeiro capítulo, encontramo-la de férias na Crimeia, acompanhada por um filho pequeno complicado, a meio de uma crise familiar e da preparação de uma tese de doutoramento na área da literatura. Julgando levar uma “nojenta porcaria de vida”, lê o romance “Anna Karénina” como se este fosse mais autêntico do que a realidade, “com o objectivo de comparar alguns acontecimentos da sua própria vida conjugal em vias de degradação com o verdadeiro drama da verdadeira mulher”, até ser distraída pela chegada de outra veraneante, que a toma por confidente. Desde então, Génia vê-se incapaz de deixar de pensar “no enorme destino” dessa mulher, “comparado com o qual o suicídio à moda antiga de Anna Karénina empalidecia e tornava-se uma espécie de capricho de senhora desmiolada”, acabando perturbada pela revelação de que os elementos que mais a comoveram no relato são falsos.
Depois desta leitura, partimos para os restantes capítulos imbuídos de um espírito detectivesco, procurando detectar antes da protagonista as mentiras das mulheres com quem se cruza, das mais diversas idades e estratos sociais – tarefa dificultada quando a mistificação nem sempre reside nas afirmações que se afiguram mais inverosímeis e as suas motivações permanecem por clarificar, deixando ao leitor margem de manobra para imaginar as vidas interiores dessas personagens.
Do início ao fim, decorre um período de quase 20 anos, ao longo do qual vamos descobrindo que o filho complicado se transformou num homem capaz, que ganhou um irmão, e que Génia se reconciliou com o companheiro que em tempos trocara por outro. Em paralelo, descortinamos transformações no antigo mundo soviético, desde os tempos de Gorbatchov, mais insinuadas do que explicitamente referidas. O cerne da obra é a mente humana, exposta em retalhos de vidas apresentados de forma quase cinematográfica nas descrições e nos diálogos. Não será incidental que a expressão “fim do argumento” encerre mais de uma história – incluindo aquela a que dá título – nem que Génia seja, a dada altura, convidada a escrever o argumento para um filme, num jogo metaficcional em que a autora prova ser mestre.
Sem Comentários