Em “Menina a Caminho” (Companhia das Letras, 2017), do brasileiro Raduan Nassar, a prosa é cristalina e simples, eminentemente poética. Acompanha-se as personagens e os enredos com facilidade, sem bloqueios, quase como se fisicamente estivéssemos lá, tal a transparência da narrativa. Mas não se confunda esta beleza com simplicidade excessiva. Em momento algum o desfecho é evidente – pelo contrário, nalguns dos contos confrange a mensagem que é deixada, ao mesmo tempo evidente e subtil.
A menina que vinda de casa caminha sem pressa, circula descalça e mal cuidada pelas ruas da cidade, olha e capta vida à sua volta, os diálogos, as relações, os meninos que brincam e se disputam, dona Ismênia que, “debruçada sobre uma almofada de cetim azul, no parapeito de uma janela alta, robusta, cheia de pintura, desfrutando a primeira sombra que já tomba da sua casa, chama” uma outra menina que passa bem vestida e limpa no seu uniforme de escola, lancheira a tiracolo, mas que na escola sucumbe à tirania e à implacável régua de dona Eudóxia, velha mestre-escola.
Acresce Zé das palhas, alvo dos gracejos do povo, que faz discursos contra o governo e acredita que o rádio que toca e fala também serve para levar de volta a voz das gentes. Ao longo deste primeiro conto acompanhamos o olhar da menina no seu percurso até casa, a descoberta de vidas por vezes dramáticas, ao ponto de já em casa optar por voltar a sair, sem se atrever a entrar no quarto da mãe, mesmo após a casa se ter acalmado. Prefere deixar aquele espaço e voltar para a rua, brincar com as crianças da vizinha da frente e libertar-se daquela realidade. Segue-se o olhar de uma mulher sobre o seu amado, um casal que se distanciou no olhar e na cumplicidade. Um olhar ou uma caminhada na intimidade.
Há ainda uma despedida, mais uma vez numa relação de alguém consigo e com o outro, com a sua entrega e a expectativa que lhe está inerente. O olhar de um homem mais velho sobre o amor, a exigência e a ânsia de uma amada mais nova, numa carta de despedida que nos conduz uma vez mais à beleza da intimidade, mesmo quando esta termina.
Ao todo, sete contos breves e um ensaio, que nos familiarizam com olhares sobre o Brasil e a vida em sociedade, o domínio e a libertação, a ética e o sonho de se procurar, ainda que por momentos, esquecer a rudeza do quotidiano, sabendo-o ainda assim inevitável.
Esta colectânea de contos de Raduan Nassar reúne textos escritos entre 1960 e 1970, anteriormente publicados em jornais e revistas, originalmente compilados e premiados na década de 90, depois do autor ter anunciado abandonar a literatura para se dedicar à vida rural. A nova edição de “Menina a Caminho” inclui ainda dois contos e um ensaio nunca antes publicados, sendo uma excelente oportunidade para descobrir o autor brasileiro que ganhou o Prémio Camões em 2016 e que, pela reserva da sua produção, granjeou uma aura de mistério. Lê-lo é reconhecer a beleza e a simplicidade do seu pensamento e da sua escrita.
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