Pedro Álvares Cabral pode bem ter sido o primeiro europeu a pôr os pés no Brasil e a falar aos nativos numa língua desconhecida. Porém, no que toca à descoberta da literatura brasileira, pelo menos no que diz respeito à crónica, esta tem sido feita por quem comanda os destinos das Edições Tinta da China. Depois do brilhante “Caviar é Uma Ova”, o livro que deu a conhecer aos leitores portugueses a outra vida de Gregorio Duvivier extra Porta dos Fundos, as edições não pararam: “Oito e Meio”, da actriz ; “O Homem Fatal” e “A Vida Como Ela É…”, do grande Nelson Rodrigues; e “Meio Intelectual, Meio de Esquerda” (Tinta da China, 2016). Antes disso foi publicado “Chega de Saudade”, livro magistral de Ruy Castro que dá a conhecer as origens da Bossa Nova e a forma como esta mudou os destinos e os caminhos musicais, não só no Brasil como também noutros lugares do globo.
Nascido em São Paulo no ano de 1977, Antonio Prata é considerado um dos maiores cronistas brasileiros da actualidade. Escreve na Folha de São Paulo e foi cronista na revista Capricho e no jornal O Estado de São Paulo. É também autor de guiões para a Rede Globo, tendo publicado no Brasil vários livros de contos e crónicas, entre os quais “Nu, de botas” (2013) e “Trinta e poucos” (2016). A prestigiada revista Granta considerou-o um dos vinte melhores escritores nacionais com menos de 40 anos.
“Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, publicação que reúne cerca de 80 textos, marca a sua estreia literária em Portugal. Com muito humor e uma certa melancolia, Antonio Prata revela-se um exemplar cronista do quotidiano – nele o leitor encontrará muitos dos problemas, dilemas, alegrias e excitações que vão percorrendo os seus dias à medida que o calendário perde as suas folhas.
Logo em “Recordação”, o segundo texto, temos uma mistura muito feliz de humor com nostalgia, na forma como decidimos aprisionar para a posteridade momentos que, vai-se a ver, pouco terão a ver com a nossa essência:
“«…Mas sabe o que é mais difícil? Nã ter foto dela.» «Cê não tem nenhuma?» «Não, tenho foto, sim, eu até fiz um álbum, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Tipo: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e descobri que é assim, é do ser humano mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na represa de Guarapiranga.»”
Os assuntos retratados por Antonio Prata, em textos que não vão além das duas páginas e algumas linhas, são transversais à vida humana e aos pensamentos do dia-a-dia: fala-se do guarda-chuva como um órfão fiel e objecto contraditório; da gostosa – e da sua procura em recintos públicos – como um acontecimento literário (e um “reflexo da minha banal condição masculina“); do colchão como o melhor amigo do homem; dos ladrões de elevadores; fazem-se balanços de vida e torce-se pela equipa do coração – o Corinthians, no caso de Prata. Atravessam-se figuras da cultura urbana, como Keith Richards, Woody Allen ou Cristiano Ronaldo. Saltam à vista referências cinéfilas como 2001: Odisseia no Espaço ou televisivas como Breaking Bad; assiste-se ao renascimento do mundo interior com o nascimento dos filhos.
São crónicas escritas a grande profundidade, com escafandro e em modo de apneia. Humor de calção e chinelo, sem gravata ou paletó. Sempre com um segundo sentido escondido, um pouco como acontece com as histórias infantis, e um sentido de dever cívico que salta à vista. Um espelho brilhante que reflecte o belo quotidiano.
Sem Comentários