“Maus Hábitos” (Alfaguara, 2024), de Alana S. Portero, é uma espécie de cicatriz lírica. “Eu, menina esperta, maricas encoberta, gaga, gorducha, com uma pala a cobrir-me o olho esquerdo e uns óculos maiores do que o desejável, era o oposto da imagem de uma pequena endiabrada […]. Quando os adultos olhavam para mim, achavam-me engraçada ou sentiam um pouco de pena, nada grave […]. Dava-me conta disso e aprendi a usá-lo a meu favor. Conseguia pensar em termos cruéis. A consciência de que necessitamos de um armário para nos escondermos torna-nos espertíssimos”.
Um (mau) hábito com os seus dissabores e muitos socalcos para galgar, de forma a cartografar o território íntimo do género e da sexualidade – sem esquecer que nenhuma natureza humana cresce e desabrocha sem estar encaixada numa fauna e flora particular de cada época. Este livro fala, por isso, de cenários de libertação e superação, mas é também um retrato de época, muito bem descrito (e criticado) por uma espectadora atenta e à procura do seu lugar. O brilhantismo de Alana S. Portero é fazê-lo de forma poética, ternurenta e sagaz, sem nunca deixar de revelar o sofrimento envolvido, o abandono que sentia e a violência do meio envolvente.
“A minha vida interior desfraldou-se sobre aquele fotograma de dor e miséria, imaginando-me leve e translúcida sobre o corpo morto, beijando-o com a leveza das coisas que não existem, não para o acordar da sua letargia, não para ser correspondida, mas desejando com toda a minha alma beijar uma coisa tão bela e indefesa. Uma coisa que, parecia caída do céu e deixada como ex-voto na minha entrada. Uma coisa que, por entre o ruído e a fúria de mães com a baba a escorrer e de pais que tapavam a boca para conterem o pranto, senti que me pertencia.”
Nas mortes dos outros, próximo dos seus olhos e da sua porta – um regime em cima de outro regime, a droga como herança da opressão franquista –, caracterizou – ou descaracterizou – o bairro operário onde cresceu, e onde determinou as fugas para noites clandestinas na movida madrilena, para se descobrir num género que sempre soube que seria o seu. “Eu adormecia muitas noites a enrolar o meu próprio cabelo, não fosse dar-se o caso de o caminho para a vida de ninfa começar pelo encaracolar do cabelo no mundo dos sonhos”.
Claro que a ninfa cresceu oprimida mas, ainda assim, a forma como descreve os pais, o bairro, a violência dos vizinhos, as primeiras experiências e até os ataques, tem sempre uma delicadeza que espanta o leitor, talvez porque existe um perdão enorme que se lê nas entrelinhas.
Antes de se definir totalmente e superar as amarras das definições alheias, tecidas por palavras duras e preconceitos – “por medos próprios e aprendidos” -, vamos acompanhar o seu itinerário, de existência corrigida e vergada até à profecia auto-cumprida, quando a euforia de género explode com todo o seu brilho e orgulho.
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